Carta à minha sobrinha

20 de dezembro de 2020 7 Por Leandro Marçal

Helena Maria,

Quando você tiver idade para ler esta carta, é possível que alguém precise explicar o que é uma carta. Mesmo quando comecei a escrevê-la, quase ninguém mais se comunicava por cartas. No passado, cartas já eram coisas do passado. Ficou um nome bonito e endereçado a alguém, apenas. As cartas foram populares, mas os tempos digitais forçaram sua aposentadoria. É possível que alguém também precise explicar o que é aposentadoria. Se eu ainda estiver vivo, pode me cobrar, eu explico. 

Você veio ao mundo num tempo muito esquisito, no ano 1 da pandemia de covid-19. Ver milhões morrendo pelo mundo, ver milhares morrendo todos os dias, ver tanta gente negando a realidade. Era assustador, as pessoas de bom senso se espantavam com a degradação do nosso país. É possível que alguém precise explicar o que é um país. Tudo andava mais estranho que o normal, por isso quando sua mãe anunciou a gravidez, num sábado de jogo ruim na tevê, deu receio. Até porque sou hipocondríaco. Vão explicar o que é isso, não se preocupe.

Confesso que não entendi bem porque sua mãe e seu pai escolheram um nome composto, mas nunca foi meu forte entender sua mãe. Seus avós também tinham alguma dificuldade nisso. Muitas outras pessoas também. Não importa. Importa saber que o mundo assusta, a vida assusta, os medos assustam. Eles são tão grandes que não dá para controlá-los. Ainda assim, você vai conhecer um montão de gente que jura ter a capacidade de controlar tudo: o mundo, a vida, as emoções, as paixões. Se possível, desvie dessa gente. E sempre que possível, evite ser esse tipo de gente.

Sou engolido por um lado excessivamente racional quase o tempo todo. Me ouça, mas não me copie. Nem no excesso de racionalidade, nem no pessimismo exagerado. Desculpe a distração, essa carta não é sobre mim, é menos sobre você e mais para você. No tempo do seu nascimento, Helena, Maria, Helena Maria, a burrice e a estupidez viviam grande fase. As pessoas se orgulhavam da própria ignorância e insensatez. Infelizmente, não fomos competentes ao evitar esse movimento e o mundo aí, no futuro, não deve ser estar muito melhor.

Não quero te assustar, não, mas é bom ter consciência desde cedo. De que o ano em que você nasceu foi o pior da vida de muita gente. Quando ouvir isso, não leve a mal, não é nada contra você.

Ainda havia muitas pessoas dispostas a dificultar a vida de mulheres. Também ainda existia muita gente com ânsia e atrapalhar os dias de quem pensa diferente e tem outra cor de pele, religião, orientação sexual e estava fora de supostos padrões. Espero que quando você estiver lendo, tudo isso melhore, mas não tenho muita certeza.

Eu tenho certeza, mesmo, é de que quando você estiver lendo esta carta, a temperatura estará mais alta. O planeta estará ainda mais quente, ele vem esquentando dia após dia. Aí, no futuro, sofreremos um pouco mais os efeitos de um aquecimento falado há algum tempo, mas que uns e outros insistem em não acreditar. Caprichos humanos. Humanos demais, humanos de menos.

É tanta coisa, não cabe tudo num texto. Não cabe tudo num mundo. O seu mundo, Helena Maria, é só seu. Ninguém nunca haverá de conhecê-lo na totalidade. Você ainda vai ter muitas histórias para contar. E ouvir, e viver, e criar, e recriar. E mais, muito mais.

Se eu ainda estiver por aí, no futuro, prometo seguir dando uma força na luta contra a estupidez e a burrice dessa gente cretina. Lamento informar, mas fatalmente você vai trombar com elas por aqui e por ali. Mas sempre que possível, vai ter alguém para explicar os atalhos e mostrar os caminhos para fazer o melhor, mesmo que o mundo pareça pior.

Seja bem-vinda, Helena Maria.