O cão*

6 de dezembro de 2019 1 Por Leandro Marçal

*Aqui, íntegra do conto premiado com o 3º lugar no X Concurso Pérolas da Literatura, realizado pela Secretaria de Cultura de Guarujá. Comecei a escrevê-lo em uma das oficinas do Projeto Autoria Cultural, promovido pela grande Lu Menezes, a quem muito agradeço desde sempre.

Perdi o controle, mas não foi do dia pra noite. Aqui, deitado, percebo que poderia ter sido um marido melhor pra Márcia, que não olha pra trás quando chamo. Sentia medo de ouvir um “adeus, Jair”, mas ela nem me deu esse direito.

Desde o sim, no altar, senti mudanças. Só conhecemos as pessoas de verdade quando dividimos o mesmo teto. Morar longe da família e dos amigos foi estratégia de distanciamento, disfarçada por uma escolha profissional que eu poderia evitar.

Os dias de sexo a toda hora, em cada cômodo, em cima das mesas, deveriam ser sempre. Foi pensando nisso que pedi pra ela ser do lar. Nem pensava nela negando fogo. Aquilo me irritava, antes até de me afogar no bar da rua de trás, queria ela só pra mim.

Naquela sexta-feira, cansado e bêbado, amarrei seus braços com um pano de prato na cabeceira da cama. Calei seus gritos com a fronha e entrei pela porta de trás. Pra ela aprender quem é que manda. Isso depois de confiscar telefone e computador, evitando contato com o mundo lá fora.

Perdi a paciência e pus veneno na comida do Rex, o mala do cachorro que a gente trouxe. Quando ele morreu, deixei o corpo um tempinho na sala antes de enterrar. Só assim pra ela perceber que o passado já era.

Ela perdia um cão e ganhava outro, pra atormentar a vida, me disse aos prantos. Claro que um belo tapa na cara foi o jeito de moralizar minha carne. Que palhaçada era aquela? Era só um cão, Márcia, só um cão.

E eu nem sabia que espancar mulher era um vício tão forte quanto a cachaça do bar da rua de trás. Comecei uma vez por semana, depois todos os dias de dor de cabeça e falta de sexo. A pior delas foi no dia que meti na loira no sofá de casa. A Márcia ficou puta comigo, mas porra!, ainda respeitei nossa cama. Evitei ir ao hospital, mas ela disse que caiu da escada. Marcinha é ligeira demais.

Aliás, Márcia, Marcinha só no namoro, antes dos primeiros tabefes. Percebi umas olheiras estranhas, uma apatia sem choro. Nem quando usei seus cartões, pensão e poupança ela reclamou, parecia ter desistido ou se conformado. Não tenho culpa das expectativas de ninguém.

Besta, nem desconfiei. Continuava vindo pra cá no almoço, intercalando com TV, almoço e janta. No horário certo pra não me irritar. Um silêncio, a Márcia não falava nada, não tinha a doçura dos primeiros meses, nem a amargura das brigas.

Até por isso, evitei levantar a mão com a estranha cordialidade no almoço de hoje. Na frente da TV, minha garganta travou um pouco, reclamei da comida seca. Ela me deu um copo d’água, gritei por refrigerante. Não conseguia falar, depois andar, então só olhava, caído no chão, sem forças.

Seus olhos se aproximaram do meu rosto, ela passou na cara minhas maldades. Depois de tanto tempo, veneno na comida. Que é isso, Marcinha? Volta aqui.

Foi embora e me deixou imóvel no chão frio, nem tinha percebido a falta do velho carpete da sala, onde o Rex agonizou. Caí no mesmo canto.

Estamos quites, disse Márcia. Acabei com a vida dela, ela acabou com a minha. Matei o cão, fui o cão, morri como um cão. Não sou só um cão, Márcia.

Agora ela fechou a porta, girou a chave, pra me deixar latir à vontade. Ninguém vai me ouvir.