Warm Up

8 de agosto de 2022 0 Por Leandro Marçal

Warm Up era um treino das manhãs de domingo antes das corridas de Fórmula 1. Extinto em 2003, a sessão de 15 minutos colocava os pilotos na pista e precisava terminar quatro horas antes da largada. Em inglês, warm up significa aquecimento. Nele, os últimos ajustes eram feitos antes do grande prêmio do domingo, ganhando ainda mais importância quando as condições climáticas mudavam muito se comparadas aos dias anteriores.

Warm Up também era a agência de notícias especializada em cobertura de Fórmula 1, criada por Flavio Gomes depois da morte de Ayrton Senna, quando o autor se demitiu da Folha de São Paulo em episódio que rendeu uma de suas memoráveis crônicas. O nome sugerido pela também jornalista Alessandra Alves é o mesmo da coluna que Flavio publicou na Folha e em dezenas de jornais entre os anos de 1993 e 2013.

Daí o título do livro Warm Up: Os anos Schumacher em 334 textos. Se a antiga agência e o livro foram batizados com nome de aquecimento, a habilidade do autor na escrita é coisa de gente muito bem treinada, capaz de reunir num calhamaço de 511 páginas o retrato de uma era do esporte. E quem já leu o Blog do Flavio Gomes sabe que falo de um hábil piloto da escrita.

Flavio tem outros dois livros trazendo a Fórmula 1 como pano de fundo: O boto do Reno e Ímola 1994. Neles, lemos sua visão bem pessoal dos anos como repórter cobrindo a categoria mais importante do automobilismo mundial. No recém-lançado Warm Up, fica mais claro como é possível ter no esporte o panorama de um tempo, para desespero daqueles que acham absurdo misturá-lo ao que se passa fora dos campos, quadras e autódromos.

São cinco centenas de páginas de viagem ao passado. Começando pelo já distante ano de 1995, primeira temporada sem a presença de Ayrton Senna no grid, época em que o videocassete era desejo de tantas famílias. A última parada é neste 2022, meses depois do lançamento pela Netflix do documentário sobre o alemão que escreveu seu nome na Fórmula 1 por mais de duas décadas e de quem há muito tempo pouco se sabe depois do trágico acidente no esqui.

Nos 334 textos, somos conduzidos por um olhar tão bem-humorado quanto ácido pelo esporte de alto rendimento, mas não só pelo esporte de alto rendimento. Por mais que a gente esqueça, há seres humanos por baixo dos capacetes, competindo para entreter o público. E quando se analisa o dia a dia, as estratégias, os erros e acertos, o talento puro e as forçações de barra, as alfinetadas e as passadas de perna, quando se analisa tudo isso e mais um pouco é preciso paixão, mesmo na análise fria do bom jornalismo. Paixão pelo jornalismo, paixão pelo automobilismo. Flavio Gomes também mostra paixão na escrita e pela escrita, como deixou claro no romance Dois cigarros e em Gerd, der trabi, uma história de amizade entre o autor e um carrinho de plástico numa viagem ao leste europeu.

Desde o ano passado, dou oficinas esporádicas sobre o ato de escrever, mais especificamente sobre como desenvolver o olhar de cronista, este ser disposto a puxar o mínimo e o escondido nas banalidades cotidianas para tirar dali boa literatura num curto espaço de tempo. Nesse período, penso sempre que as boas crônicas seguirão com espaço na internet. Sem competir com algoritmos, porque sua intenção não é só a da atenção pela atenção.

E as boas crônicas podem nascer tanto na fila da padaria quanto nos textos voltados a um público bem específico, um público que gosta de corridas de carros, um público disposto a entender os detalhes da derrota de um piloto ou da vitória de uma escuderia de Fórmula 1. Boas crônicas podem se juntar para formar uma boa antologia, nos ajudando a compreender um período de duas décadas, com suas transformações, avanços e recuos, surgimento de talentos e previsões malsucedidas. Boas crônicas resistem ao tempo porque explicam um tempo.

Não tenho o menor talento para escrever resenhas e críticas de livros. Só depois de leituras especiais sinto vontade de rascunhar umas linhas esquecíveis sobre livros que não podem ser esquecidos. É uma vontade inadiável, uma indicação, uma sugestão ou uma simples troca de ideias em singelos parágrafos. Parece a ânsia de falar daquele filme incrível quando saímos do cinema, lembra aquele comentário nas redes sociais sobre as cenas da série favorita do momento.

Na floresta sem dono da internet, tem gente demais escrevendo bobagens demais. É fundamental passar por treinamento, aquecer o vocabulário, repetir a organização de ideias antes de publicar opiniões sobre tudo e sobre todos. E há quem faça da prática do texto uma vitória, para quem lê e para quem o escreve, como é o caso de Flavio Gomes, um dos melhores textos da imprensa esportiva.

Correr contra o tempo não faz bem para a escrita. Quando lemos, não estamos competindo contra ninguém. Respeitando o tempo da literatura, a celebração pela descoberta dos textos campeões continua, mesmo depois da última página.