Santos 0x4 Barcelona

18 de dezembro de 2021 2 Por Leandro Marçal

Acordei antes das seis, naqueles dias eu dormia pouco, tomei banho, troquei de roupa, comi um pão, o Guerra chegou na hora marcada, o Guerra era o taxista que me levava até o CT do Santos, trinta reais a ida e trinta reais a volta com reembolso no fim do mês, quase todos os dias voltava pelo morro porque era mais rápido, e no dezoito de dezembro de dois mil e onze fomos bem cedinho porque o Santos enfrentaria o Barcelona na final do Mundial de Clubes em Yokohama às oito e meia da manhã, e eu precisava chegar antes, e desci a umas quadras da Vila Belmiro pra pegar o ambiente, e passei pelo povo, e entrei no estádio, uma mochila com o notebook do Lance, sem a outra mochila com as trufas e pães de mel que a minha irmã fazia e eu vendia pra complementar renda, e entrei no estádio, e o gramado tava em reforma, e ficamos na sala dos fotógrafos à beira do campo, e uma televisão grandona ficou perto do gol à esquerda das cabines, e uns mais fanáticos também saíram de casa bem cedo pra assistir o jogo de uma vida praquela geração, e encontrei os colegas da imprensa, e uns tinham olhos vermelhos, e outros se empolgavam, e outros sabiam que não ia dar, e outro mais velho me disse “se o Santos ganhar, meu amigo, te prepara pra trabalhar até o fim dos tempos”, e eu fiz questão de escolher um bom lugar pra me acomodar e não ter nenhum imprevisto, e eu morro de medo de imprevistos, e morro de medo de um imprevisto custar meu emprego ou a vida de alguém, e chamei o pessoal da Redação e avisei que tava tudo certo e era só esperar o começo do jogo. Eu trabalhava boa parte do tempo de casa, e fiquei no fuso-horário do Hazan lá no Japão, e também fazia o fuso dos caras na Redação em São Paulo, e não reclamava porque puta que pariu, eu tava cobrindo um Mundial de Clubes, dias atrás o Guerra foi com a minha mãe no Centro comprar um teclado porque eu derramei café no notebook da empresa e pensei que nunca mais ia trabalhar em lugar nenhum, e pouco tempo antes disso precisamos sair às pressas quase despejados da casa da família onde morei por 20 anos, e uns meses antes eu nem sonhava em ter tevê por assinatura em casa, e bem antes disso ninguém acreditou quando falei que consegui a bolsa integral no curso de jornalismo, e ainda mais tempo antes eu estudei em todo horário de almoço com livros e enciclopédias porque se eu não passasse no Enem tava fodido demais trabalhando em fábrica porque mal consigo trocar uma lâmpada sem derrubar tudo. “O Cassucci ficou branco com a escalação”, me disseram, acho que foi o Serbonchini, e todo mundo se olhou na salinha com vidro de cara pro gramado, mas que merda o Muricy fez?, e começou o jogo, e o Messi fez um a zero pro Barcelona aos dezesseis do primeiro tempo, e o Xavi fez dois a zero pro Barcelona aos vinte e três do primeiro tempo, e o Fábregas fez três a zero pro Barcelona aos quarenta e três do primeiro tempo, e puta que pariu!, já era, e no intervalo fui andar um pouco pra ver como tavam os torcedores, e era um clima de “fazer o quê, né?”, e o Messi ainda fez quatro a zero aos trinta e sete do segundo tempo, e eu pensei “bom, pelo visto não vou trabalhar até o fim da eternidade por hoje”. Não tinha festa na Praça da Independência na volta pra casa, só um convite pra almoçar num quiosque da praia, e levei o notebook pro quiosque da praia no meio do almoço, e me disseram que eu podia voltar do folgão acumulado só depois do Natal, e depois do Natal uns já tinham saído do jornal, e o ano virou, e tudo mudou porque a vida muda o tempo todo sem avisar, e nós temos de contar ano a ano, e nem tem como ser diferente.

E naquele jogo, eu trabalhei naquele jogo, eu trabalhei naqueles dias, eu trabalhei naqueles meses. Dez anos hoje. Uma década. O tempo passa rápido, muito rápido.