Por que o “bambi” te ofende?

30 de junho de 2021 0 Por Leandro Marçal

O acaso e os algoritmos presentearam minha linha do tempo. No Twitter, me chamou atenção uma coluna no UOL, que cobrava a torcida do Corinthians a abolir o apelido “bambi” contra o São Paulo e os são paulinos. O fim do xingamento com pegada homofóbica seria coerente com a postura antirracista que culminou no rompimento de contrato de Danilo Avelar, depois de suas falas inaceitáveis e abjetas nas internets da vida.

Tenho um latifúndio acima do pescoço. Talvez por isso, minha boa memória trouxe um antigo texto, no mesmo UOL, com incentivos aos são paulinos a adotarem de uma vez o apelido: bambi, por que não? Na época, um amigo tricolor ficou revoltado em um grupo de Facebook contra “aquele jornalistinha corintiano fazendo chacota com o São Paulo”.

Pertenço à raça mais odiada entre torcedores de futebol: o vira-casaca. É uma longa história, outro dia eu conto. Mas há alguns anos, eu tentava disfarçar, mudava de assunto e avermelhava as bochechas quando amigos antigos traziam esse segredo à tona. Com o passar do tempo, perdi a vergonha, falei disso sem melindres e cheguei à mais que óbvia conclusão: não faz o menor sentido jogar parte da minha história para baixo do tapete.

Dizem que apelido só pega quando a gente se ofende, xinga em contra-ataque, tenta dar porradas nos criativos e sacanas. Sendo assim, por que o “bambi” te ofende, compatriota são paulino? Abala a sua sexualidade? Muda os seus desejos íntimos? Causa repulsa? Se a resposta for sim às últimas três perguntas, talvez você não se conheça tão bem assim. Recomendo terapia.

Mas se os palmeirenses adotaram para si o “porco”, mesmo com as origens não muito honrosas do apelido, passou da hora de nós, tricolores, mandarmos às favas o atraso boleiro e nos intitularmos “bambi”, por que não?

Certo, você pode achar um absurdo cobrar a mudança em quem é ofendido, não em quem ofende. Só que minha proposta não busca mudar o mundo, embora isso seja necessário. É só a ideia de um posicionamento de vanguarda, à frente, para cagar na cabeça de qualquer preconceito, muito além das campanhas esporádicas da área de comunicação. Coisa prática, mesmo, e que não causaria danos a ninguém.  

Por que o “bambi” te ofende, amigo tricolor? Fico incomodado, mesmo, quando falam no São Paulo como time de playboys, clube de burguês, torcida de soberbos, arrogantes, metidos a besta. Não dá nem para comparar, convenhamos. Me incomoda é saber como parte da torcida tratou Richarlyson por anos e anos, sem orgulho da sua participação fundamental naqueles anos de tantos títulos. Causa repulsa, mesmo, é um posicionamento envergonhado sobre causas humanitárias, feito um moleque mimado pedindo desculpas porque o pai mandou.

Se o futebol é um espelho do mundo fora das quatro linhas, nada mais humanista do que dar um passo à frente, marcar posição e tomar para si o apelido besta: bambi, sim, sem aspas. E daí? Qual a graça? Se precisamos contestar todo racismo exposto publicamente, também passou da hora de deixar de lado a homofobia e o machismo dentro de nós, escondidos entre brincadeiras e supostas frases inofensivas.

Podem me chamar de bambi, cara de pastel, cabeça de melão ou qualquer apelido dos tempos da quinta série. Não faz diferença, nunca deveria ter feito, nem muda nada.

DICA DE LEITURA: Em fevereiro de 2017, o Puntero Izquierdo publicou a reportagem “Bicha! A homofobia no futebol como legado da Copa”. É extensa, profunda. Recomendo a leitura.