Para não deixar morrer

9 de maio de 2022 1 Por Leandro Marçal

Demorei uns bons minutos para processar a notificação no aplicativo do jornal. Manhã de domingo, três de abril de dois mil e vinte e dois, a triste e inevitável morte de Lygia Fagundes Telles pipocava na tela do celular. Em pouco tempo, as redes sociais e o noticiário e os textos e os vídeos no YouTube reverenciavam uma das mais importantes escritoras da literatura brasileira em todos os tempos. E ainda nem sabíamos que Lygia era mais que centenária, omitindo cinco anos de uma vida dedicada às letras.

Meu primeiro contato com sua prosa foi no distante tempo da escola. Em algum desses livros didáticos ou apostilas para aulas de português, li despretensiosamente o conto Venha ver o pôr do sol. Terminei impactado e sem saber o que fazer da vida (isso não mudou muito). Se minha memória não for tão falha como são as memórias, terá sido meu primeiro contato com um conto, mas eu demoraria um bocado de anos para ler mais textos deste gênero. Quase uma década depois, no curso de Escrita Literária, foi a vez do romance As meninas gerar ótimos papos e trocas de ideias na turma de uns quinze pretensos escribas.

Lygia é presente, mas na sua companhia é impossível não fazer viagens ao passado. Durante uma homenagem recebida na Academia Paulista de Letras em 2012, seu discurso foi encerrado com um apelo: “Faço um convite ao jovem leitor: Me leia. Não me deixe morrer.” Não deixarei. Quando lidos e relidos e revisitados, escritores seguem vivos, mesmo depois de mortos, numa conexão quase impossível de explicar, em que acessamos as profundezas de uma alma dedicada a nós por meio da escrita.

Nessa tentativa bem-sucedida de mantê-la aqui, entre nós, li com atraso Durante aquele estranho chá, publicação de dois mil e dois que há uns bons anos me encarava, me chamando para uma viagem entre páginas. Ingênuo, deixava para o fim da fila, adiava para sei lá quando. Demorei demais para ingerir essa mistura de memórias e contos. Na prosa fácil, somos cúmplices de Lygia, que nos oferece a palavra como quem reparte um pão. Um convite à leitura e não só de suas obras. Um convite à literatura como obra viva. São textos remontando o passado sem tirar os pés do presente.

No interminável dois mil e vinte e um, ouvi com comoção Os mistérios de Lygia Fagundes Telles, episódio especial do podcast 451 MHz dedicado à escritora. Tenho guardado no notebook o áudio de Adriana Esteves interpretando um texto até então inédito de Lygia, narração de um sonho com a morte como fato inevitável. E prometo começar em breve Os contos, coletânea de todas narrativas breves publicadas ao longo de uma extensa e convidativa bibliografia.

Lygia vive. Não deixarei que ela morra.