Morreu na terapia

31 de maio de 2023 0 Por Leandro Marçal

Logo ao fim da sessão, percebo que não vou falar com mais ninguém sobre aquilo. Morreu na terapia. Foi tarde. Está enterrado e me recuso a marcar missa de sétimo dia. Espero nunca ressuscitá-lo. Nem sempre é fácil, mas a gente aprende. Mesmo que na porrada, mesmo depois de muito bater cabeça, mesmo perdendo umas boas noites de sono.

Nada de desabafo, sem papo de boteco, nem conversa ao pé do ouvido. Não tem pai e mãe que nos faça voltar ao assunto, não tem namorado ou esposa que nos convença a exumar o cadáver, não tem melhor amigo capaz de ter sucesso no interrogatório. Se ficou na terapia, de lá não sai.

Me perguntam a motivação para o encontro semanal, especulam sobre o que falo, sondam a maneira como puxo assunto, me olham como se eu tivesse pousado de outro planeta há poucos minutos. Chegam a buscar sentido em “gastar” dinheiro para “conversar”. Acham graça ao questionar se na psicoterapia alguém ganha para ouvir minhas lamentações. Mal sabem como é bom matar esse tema e tantos outros lá, só lá, na terapia.

Ao fim da sessão, percebo que aqueles 50 minutos semanais me deixam uma pessoa melhor. Só um pouquinho, que seja. Melhoro ao tentar melhorar. Entendo com mais profundidade quem sou, revejo o passado com distanciamento, analiso o presente, deixo o futuro para o futuro.

Me encaro. E nem sempre isso é agradável, porque ao me ver, sou obrigado a olhar nos olhos de uns demônios internos. O processo é assim: primeiro faz mal para depois fazer bem. Parece a boa sensação de ter me exercitado, diferente da terrível percepção de estar me exercitando.

No começo, passava horas tentando planejar as falas da próxima sessão. Em vão, é claro. Bastava tocar em um tema, passar ao lado de um incômodo, esboçar uma palavra e o fio era desenrolado. Dali, era conduzido à ingrata tarefa de cutucar minhas feridas. É dolorido, mas necessário para a cicatrização. Faz parte do tratamento. Às vezes, preciso deixar esse corte aberto por uma semana, e outra semana, e outra semana, porque diminuir a dor demanda tempo. Bastante tempo.

Quando me perguntam como foi, sou monossilábico. No máximo, balanço a cabeça. Vejo gotas de constrangimento se diluindo em litros de vontade contida. Essa vontade que as pessoas têm de saber mais, de abrir minha cabeça e assistir, de camarote, o replay de cada sessão.

Se me perguntam sobre o que falei, não respondo. Se me questionam quanto ao andamento da psicoterapia, pouco falo. Se me importunam para saber qual o assunto do dia na sessão semanal, me calo. Morreu na terapia, ficou na terapia.