Galvão Bueno está entre nós

24 de maio de 2019 0 Por Leandro Marçal

Meu amigo Alexandre gosta de me colocar em enrascadas. Já fiquei constrangido quando ele me obrigou a explanar teorias muito sensatas, mas incompreensíveis para quem não está à frente desses tempos estranhos.

Na última semana, devo ter ficado com as bochechas rosadas ao expor outra aleatoriedade para um recém-conhecido. Saímos do escritório mais cedo e encontramos Carlos Eduardo, seu amigo, no bar do Luizinho. Ele nos cumprimentou perguntando a Alexandre se eu era o tal do escritor. Respondi que há gente demais escrevendo besteiras por aí e eu era um desses.

Rimos e interrompi Carlos Eduardo quando me chamou de mito. Afinal, a qualquer idiota dão esse adjetivo e dispenso ofensas. O sol se punha e esperávamos o pessoal de todas as sextas-feiras. Decidimos começar logo os trabalhos etílicos com o bar ainda vazio e Alexandre provocou meu olhar torto.

– É amigo…

– Ah não, Alê.

– Pô, o Carlos Eduardo merece, vai.

– Opa, claro que mereço. Nem sei o que mereço, mas mereço.

Chegou a cerveja, brindamos e dei um gole para tomar coragem.

– Cara, você sabe que isso é bizarro, né?

– Sei, mas faz muito sentido. O Carlucho…

– Carlucho?

– Sacanagem, sacanagem. O Carlão quer ouvir. É o seguinte, Carlão: o Leandro diz que há uma fala, uma frase, sei lá, um bordão do Galvão Bueno pra cada momento da vida. Isso aqui e agora, as horas que tá pegando alguém, até se brochar, né? Quando toma uma fechada no trânsito, num enterro. Tudo, absolutamente tudo pode ser pontuado com um bordão do Galvão Bueno. Tipo uma trilha sonora, sabe?

– Como assim? – Carlos Eduardo fez cara de dúvida, pegou seu copo americano e acenou para alguém fora do bar. Olhamos para fora, mas rapidamente voltamos nossa concentração ao papo importantíssimo na mesa. Engoli o restinho do líquido sagrado e passei a falar gesticulando, professoralmente.

– É o seguinte… Carlos, né? É o seguinte, Carlos. Goste ou não, é impossível ficar indiferente ao Galvão Bueno, certo?

– Certo.

– Então, nem é a questão de gostar ou de não gostar. O pessoal adora odiar o Galvão, mas não muda de canal, já reparou? Então, é porque o Galvão meio que narra a vida da gente. Eu já escrevi disso faz um tempo, só que generalizando. O Galvão não, ele tem bordões pra tudo que acontece.

– Como assim?

– Tipo, é mentalmente, aquele papo de vozes na cabeça. Exemplo: você chega no trampo e tá lá o ascensorista, logo vem o grito dele de quem é que sooooooooooooobe? Você chama a mina pra sair contigo e quando suas cabeças se aproximam pra dar o primeiro beijo, ele solta um olha o gol, olha o gol, olha o gol, olha o gol. Só você ouve, mas todo mundo sabe disso. Teu colega de escritório faz uma cagada monumental, derruba o café, sei lá, tem um olha o que ele fez, olha o que ele fez, olha o que ele fez, olha o que ele fez. Depois de pegar alguém, cair o salário, passar numa prova, gozar, receber um elogio: é teeeeeeeetra, é teeeeeeeetra, é teeeeeeeetra.

– Essa serve pras cinco horas das sextas-feiras – Alexandre não se aguentou – Desculpa, Leandrão, continua aí.

Carlos Eduardo não tirava os olhos de mim, sobrancelhas arqueadas e atenção total.

– Tem a parte negativa também. O chefe te dá um esculacho na frente de todo mundo? E lá vem maaaaaais, lá vem maaaaaais, olha a bola tocada, virou passeiooooo. Do 7 a 1, lembra? Quando a gente acha que vai ser assaltado na rua rola um olha a chaaaaaaaaaaance, ou é perigooooooooooso, ou ainda um jogou pra áááááááááááááárea. Sabe quando a seleção brasileira tá levando pressão e tem um aviso da tragédia se aproximando?

– Tá acompanhando, Carlão?

– Tô sim.

Notei a incredulidade no olhar de Carlos, mas não podia voltar atrás.

– Se começam a sair na porrada, tem o opa, opa, pegou, pegou, mão esquerda, esquerda, trocou, direita, direita. Pra comemorar, ainda tem o ééééééééééééééééééééééééé do Brasil ou mesmo o Ayrton, Ayrton, Ayyyyyyyyyyyrton Senna do Brasil. Olha, te confesso que toda vez que estou muito apertado pra ir ao banheiro, sento no vaso e fico aliviado, vem forte o é prata é prata é prata é praaaaaata para o Brasil. Olimpíadas. Revezamento 4×100, Austrália, 2000. Tá ligado?

– Claro, bons tempos.

– Pois é, é isso. O Galvão tá aqui, ó – dei dois toques com o indicador na minha fonte – com os bordões pontuando nossa vida toda, momentos bons, momentos ruins. Não tem como fugir.

– Sacou, Carlão? Isso não é genial?

– É. No mínimo, criativo.

Silêncio constrangedor.

– Nunca aconteceu com você?

– Pra ser sincero? Não. Mas acho que daqui pra frente o Galvão não vai sair da minha cabeça. Você é o culpado. Não sei se vou te perdoar.

Demos risada, o pessoal dos outros escritórios, dos outros prédios, da redondeza, chegou. Começou o samba, falamos de outras coisas. Estou curioso para o papo no barzinho da próxima sexta-feira, espero que Carlos Eduardo apareça. Meu amigo Alexandre vai, certamente. Ele gosta de me colocar em enrascadas.