Futuros*

30 de junho de 2023 0 Por Leandro Marçal

*O conto abaixo já foi publicado AQUI, no site O Mistral. Segue uma linha comum na minha ficção, de protagonistas masculinos e problemáticos.

__________

Pedro fica sem graça quando lhe oferecem favores, como as caronas na volta do trabalho. Não tem carro, odeia dirigir. Segue diariamente o mesmo caminho do pessoal do setor, mas não pede nada. Quando o senhor prestes a se aposentar diz que há espaço no carro, pergunta se não é muito incômodo, o ônibus passa rápido, o ponto é em frente a seu prédio. Vencido e sem jeito, agradece, coça a cabeça, olha para os lados e aceita. Como naquela terça, quando conferiu os relatórios e checou as metas. Tudo em dia, esperou o tempo passar e caminhou até o estacionamento. Havia promessa de temporal.

No caminho até o apartamento em que morava com os pais desde o nascimento, ficou espremido no banco de trás, entre o colega mais chegado e a novata. No banco da frente, o supervisor no lado do passageiro cochilava e era despertado pelos chiados do para-brisa.

Naquela terça, Pedro tentou esconder o anel de noivado, mas o colega mais chegado era atento.

— Noivou, Pedrão?

— Opa, um soldado a menos? — brincou o senhor prestes a se aposentar, olhando pelo retrovisor. Gostava tanto de dirigir quanto de dar caronas, trocar ideias, ouvir os jovens em começo de carreira.

— É… Noivamos.

— Já tem data pro casório?

— Marcada, certinho, não. O plano é pra daqui uns dois anos. Tâmo juntando grana pro apê. Sete anos já.

— Quanto tempo…

— É… Não quero dar um passo maior que a perna. A Bia é foda, me pressiona sem querer me pressionar.

— Mulheres — riu a novata.

Pedro riu de volta. Não com a cumplicidade de quem saca a piada. Só queria soar simpático. Gostava da ideia de um bom casamento. Filho único, sonhava em viver a própria vida. Sem depender dos pais. Com Bia. Só ele e Bia. Mais ninguém. Uma vida, um apê. Acreditava em seu relacionamento. Sentia um incômodo ao ver outros homens contando vantagens, indo a puteiros e falando às esposas sobre horas extras. Fugia das tentações, era zoado por ser fiel. Por mais que o salário fosse bom, o preço pago por conviver com aquela gente de pensamentos atrasados lhe consumia. Do trabalho para casa, de casa para o trabalho. No máximo, até à casa de Bia.

— Ô Pedrão, me diz uma coisa. Sei que cê é comprometido, mas e esse app aqui, que cê acha?

— O que eu acho?

— É. Será que vira? Dá pra se arrumar lá?

— Cara, já vi um pessoal comentando, mas não sei dizer, né? — mostrou o anel de noivado. A novata riu e balançou a cabeça.

— Isso é formalidade, quer dizer nada.

— Não entra na dele, Pedrinho — o senhor prestes a se aposentar sabia das coisas.

Pedro desceu, acenou, entrou no prédio, cumprimentou o porteiro, entrou no elevador, ouviu um trovão lá fora, agradeceu aos céus pela carona, apertou o seis, virou à direita, abriu a porta e viu as malas marrons que o pai usava nas viagens de férias. João Carlos e Diva olharam o filho abrindo e depois trancando a porta. Cheiro de notícia ruim.

Estranhou. Pensou nos últimos dias, se havia feito algo errado, digno de bronca. O vício em pornografia não era nada grave. Nem tudo é simples de entender assim, tão rápido. Muita coisa acontece, tanto tempo juntos, não é fácil a vida de casados. Por isso o pai foi respirar outros ares, dar um tempo com a mãe, sem saber quando e se voltava. Pedro era adulto, tinha que entender.

Sentado no sofá, ficou mudo. João Carlos carregou as malas sozinho e não quis olhar para trás. O pai, logo o pai. Diva pediu para ficar sozinha no quarto. Pedro não quis jantar. Procurou por Bia nos contatos do celular. Foi cobrado pelas horas sem mensagens. A última foi no meio do expediente.

Como era possível tanta desatenção, sem perceber as coisas de mal a pior com os velhos? Diva conversou seriamente com a nora. Descobriu um caso de João Carlos. Não que ele deixasse faltar algo, fosse marido abusivo ou pai ausente. Não que Diva fosse radical com traições. Mas era um caso, não uma noite. Insuportável. Mas Pedro não aceitava que a noiva não tivesse contado nada. Há promessas de segredo que precisam ser cumpridas e ela respeitava a sogrinha. Mas tudo deve ser dito em uma vida a dois. Bia relevou, não queria discutir a relação à distância. Pediu para o amor descansar, prometeu visitá-lo no dia seguinte para fazer companhia e outras coisas.

Sem conseguir pensar, Pedro foi tomar banho. Sentado no vaso, entrou no mesmo site pornô de todos os dias. Desistiu. Buscou um aplicativo. Aquele. Baixou, só para ver como funcionava. Nem sabia mais agir como solteiro.

Buscou uma foto escura, deixou apenas as iniciais e um ar de mistério. Para nenhuma amiga de Bia encontrá-lo. Para não dar merda. Nem chance ao tédio. O pai, logo o pai. Precisava descontrair e ter assunto no horário de almoço. Nada sério.

***

— Joana? Não é fake?

— Nada. Tô pra te falar faz uns dias. No começo ela tinha medo do ex descobrir, mas foi se soltando. O app lá funciona, valeu.

— Mas puta merda, hein? Cagou quando eu perguntei, agora tá se dando bem.

— Mas eu não me dei bem, tô de boa.

— Ainda.

— Sei lá, viu. Ela terminou tem pouco tempo.

— E?

— Fico pensando na Bia, sabe?

— Tá metendo o louco? Casamento é foda, aproveita agora. Eu pensava assim também, aí numa treta quis desestressar e fudi com tudo.

— De se pensar.

— Pensar é o caralho! Onde ela mora?

— Do outro lado da cidade. Longe, viu?

— É até melhor. Te dou uma semana! Come logo, se não tá fudido comigo.

Olharam o relógio. Era hora de voltar para o prédio mais chamativo do centro comercial. Pediram a conta. Melhor evitar atrasos e descontos no banco de horas. Mais tarde, na carona, Pedro tentou esconder uma foto recebida enquanto trocava mensagens. O colega mais chegado entendeu e a novata não parava de falar do fim do período de experiência. O tédio em pessoa.

Pedro, então, guardou o celular no bolso. Só de pensar em Joana sem roupa, sentia a vida pulsar dentro da calça. No apartamento, deixou a mochila do trabalho em cima da cama, cumprimentou a mãe e foi direto ao banheiro. Tirou a roupa, posicionou o celular de baixo para cima, escolheu os melhores ângulos. Precisava se concentrar, ficar ereto, mostrar libido. Sugeriu um encontro na quinta. Tinha folgas pendentes, era o melhor dia. Sairia no horário normal para o trabalho, pegaria um táxi e passariam o dia juntos. Combinado. Precisava se desconectar, Bia estava a caminho.

O interfone tocou. Ela subiu, foi direto ao quarto. Antes de mais nada, um aviso. Haviam prometido não esconder mais nada um do outro. Diva procurou a nora, almoçaram juntas. Pensou bem, na história, em tudo. O que ela achava de voltar com João Carlos? Ele teria aprendido naquelas semanas longe da família?

***

— Pedrão, depois que separei, meu medo é fazer um filho numa doida aí.

— Mas ela toma remédio.

— Quem garante?

— Eu já vi.

— Rapaz… era todo certinho, baixou o app, fez perfil fake. Agora tá comendo por fora. Vai é arrumar pra cabeça.

— Cara, ela é foda. Fico doido, não sei. Só me preocupou esse dia.

— Mas e a Bia?

— Na primeira vez, eu tava de folga. Ela sempre reclama que eu sou certinho, metódico. Falo de reunião, essas coisas. Só nunca fui na casa dela.

— Se liga, hein. Não vai fazer merda.

— Já tô fazendo.

— Tô falando merda, merda mesmo. Outro dia noivou, agora tá nessas.

— Vou parar.

— Eu também falava isso.

Pedro respirou fundo. Olhou para a TV do restaurante. Mais reclamações e buracos na rua. Os jornais do almoço são especialistas nisso. Levou as duas comandas para o caixa. Só naquele dia, pelos conselhos. Ajudavam. Quase três meses de almoços temperados com puladas de cerca. Com Bia, tudo ia bem. Melhor que antes. Sem tédio. O relacionamento estava no auge, como se Joana o estimulasse a ser cada vez melhor com a noiva. E o pai, afinal, estava perdoado.

Joana melhorou seus dias. Nem sabia onde ele morava, não bateria à porta do apartamento para incomodar tanta felicidade. Tinha passado por um período difícil, nunca imaginou ver os pais separados. Essa distração foi produtiva, necessária, tirou o tédio, repetia em pensamento.

***

Um filho não poderia atrapalhar seu caminho. Havia planos para o futuro. A carreira bem encaminhada. Fraldas, noites sem dormir. O sonho de morar com Bia em um apartamento aconchegante não poderia ser perturbado.

E que aconchego haveria quando a noiva soubesse do filho de uma traição?

Ninguém perdoaria os encontros em motéis afastados do centro, com uma desconhecida de aplicativo para encontros casuais. Sua trajetória de prodígio, formado em faculdade cara, com fotos estampando felicidade com a noiva bonita e os pais saudáveis. Tudo seria espatifado. Como contar para os companheiros de trabalho o desconto da pensão e o motivo para não usar mais o chamativo anel de noivado? Como seguir a vida?

Não, não. Um filho assim, não. Não importava a fé de Joana. Fetos mortos, coitadinhos, são papo furado de igreja. Ela sabia que uma criança, àquela altura, seria ruim tanto para ele quanto para ela. Péssimo. O melhor era interromper a gravidez. Não tinha nada a ver com assassinato ou morte. Prudência. Difícil fazer Joana entender.

Os dois não tinham futuro. Sexo, Joana. Os encontros eram puro sexo. Tudo bem, tudo bem. Não fez nada sozinha. Mas tinha a responsabilidade de se cuidar direito. Joana devia parar de chorar e buscar uma solução. A única: tirar o bebê e fim de papo.

Menos mal a conversa pessoalmente. Entre quatro paredes. Pedro falou em usar parte do dinheiro guardado para o apartamento. Resolveria. Era um homem, daria todo o suporte possível. Estaria com Joana na clínica, pegaria uma semana de folga, inventaria uma desculpa. Só precisaria ser em outra cidade, na capital, quem sabe. Longe dali. Mas não podia deixar a amante se virar sozinha. Amante? Tudo bem, a palavra pegava mal. Joana chorava. Uma aventura, um caso, um momento.

Calma. Pensa. Precisavam ter calma. E pensar. Juntos. Nada de desespero, pensamento atrasado, essas coisas. Fariam o melhor para os dois. Para os três? Para todos, para muita gente. Família, a noiva. Em casa, conferiu valores, pesquisou na internet, abriu uma aba anônima. Joana não quis passar o endereço para Pedro buscá-la nos próximos dias rumo à clínica. Que frescura. Perguntou se mais alguém sabia, ela disfarçou. Estranho, meses se pegando e não sabia nada de seus pais, nem se tinha irmãos. Só sabia de um ex bravo. Por que esse mistério? Não importava, melhor resolver tudo logo. O resto era detalhe, irrelevância.

***

— Quanto tempo?

— Quatro meses.

— Nada?

— Nada. Me bloqueou, sumiu.

— Assim?

— Assim.

— Puta que pariu. E agora?

— Sei lá, é louca. Na real, sei quase nada dessa mina. Pedi o endereço, não passou. Dois dias depois, chamei. Silêncio. Fui ver, nem mensagem podia mandar. Me bloqueou e excluiu.

— Deixa por isso mesmo.

— E se der merda?

— Se der merda? Já deu merda, Pedrão. Cê embuchou essa vagabunda e nem sabe quem ela é. Se morreu, se abortou, se tava grávida mesmo. Se pá queria te segurar. Vai pensando que é pica de mel, vai. Toca o barco.

— Toca o barco?

— É o jeito. Fazer o quê? E o app?

— Nada.

— Nas outras redes?

— Tem milhões de Joana.

— Puta merda.

— Puta merda, mesmo. Nem sei o sobrenome dela.

— Mas como?

— Porra, eu só comia. Sem compromisso, pouca ideia. Longe daqui, de boa, sem risco. Era sexo, ninguém pedia o CPF.

— Bota louca nisso. Grávida. Puta merda. E a Bia?

— Então, ela nem desconfia. E pra eu explicar o dinheiro?

— Que dinheiro?

— A gente tem uma conta conjunta. Pro apê. Eu saquei, ela viu. Aí dei migué, falei que era pruma viagem, pra sair da rotina.

— E aí?

— Ela aceitou. A Bia come aqui — fez um gesto com a palma da mão, imitando um passarinho buscando grãos.

— Hmm…

— É. O problema é essa aí. E se ela brota de barrigão na porta de casa?

— Porra, é foda.

— Não tem jeito. Vâmo? Deu a hora.

— Bora.

— Cê falou bem. Tocar o barco, não tem muito o que fazer.

— Fica tranquilo, Pedrão. Vai dar nada.

— Deus te ouça.

— Vai ouvir.

***

Uns dias em praias do Nordeste não fazem mal a ninguém. Um pedido antigo de Bia. Dias para esquecer, relaxar, se curtirem. Tudo bem, o apartamento era um sonho. Mas todo mundo merece um descanso. Trabalho demais, estudo demais, planos demais. Ninguém é de ferro. Pedro concordava: ninguém é de ferro. E até trocou de celular. Bia estranhou, por que a mudança? Não dá para ser certinho o tempo todo. Melhor assim, assim que ela gosta. Aparelho novo, número novo. Um Pedro novo.

Precisavam daquilo depois dos meses de tantos transtornos. Quando falou da viagem, Pedro percebeu que não havia tantos transtornos assim. Só um, já resolvido, o do casamento dos pais. Mas isso lhe consumiu muito e os velhos precisavam de um tempo a sós. Bia pensou. E não é que o noivinho estava certo? Surpresa boa vê-lo assim, mais flexível. E sem motivo. Bia reparou no amor mais atento e desconfiado, olhando para os lados quando saíam nas ruas, nos bares, nas baladas. Segurava sua mão, beijava em público. Talvez os pais tivessem dado uma lição involuntária.

***

Uma escapada na rotina não mata ninguém. Não mata ninguém, concordou João Carlos, encarando o filho pelo espelho retrovisor. Diva e Bia olhavam o aeroporto pela janela.

Desceram do carro e pegaram as malas. Os velhos ajudaram e se despediram com beijos e abraços rápidos. Não podiam demorar ali. Multas. Pediram para avisar quando chegassem. Cuidado com desconhecidos, táxi, protetor solar. João Carlos ia recomendar o uso de camisinha, mas engasgou. Bia pediu tranquilidade aos sogros. Sabia bem como cuidar do noivinho nos próximos 15 dias. Deu um olhar sexual para Pedro. Viram o carro se afastando.

Passaram em algumas lojas antes do embarque. Faltava pouco mais de uma hora e meia. Era a primeira viagem dos dois assim, sozinhos. A primeira de muitas, esperava Pedro.