Filhos de bolsonaristas

26 de agosto de 2022 1 Por Leandro Marçal

Minha solidariedade é grande e genuína quando ouço relatos sinceros e decepcionados de gente querida, sinceramente decepcionada com seus pais e mães ainda crentes no bolsonarismo a essa altura do país em desgraça constante.

Me sinto como um padre no confessionário, de ouvido atento à fala meio envergonhada e meio culpada, com um fiel admitindo a derrota contra o pecado imperdoável de não convencer genitores da imbecilidade de acreditar em quem se diz mito.

Nenhum desses amigos e amigas com pais e mães bolsonaristas rompe relações com quem lhes pôs no mundo, criou na dificuldade, educou com esforço e chineladas, levou ao colégio, atendeu bilhetinhos das diretoras enfurecidas, botou o prato de comida na mesa mandando comer tudo mesmo se não quisesse porque criança não tem o que querer.

Mas fica um abismo nas relações, dá para sentir o cheiro daquele assunto silenciosamente proibido de ser trazido à superfície. Essas personagens lembram de cada Natal passado e sabem que ainda haverá muitas ceias com a família ao redor da mesa.

Falo aqui de gente consciente, com os olhos abertos para a tragédia dos últimos três anos e meio. Nem entram na minha conta os herdeiros do fascismo nosso de cada dia.

Com frequência, deixo uma palavra de conforto para quem não quer silenciar nem excluir o pai e a mãe das redes sociais, mas sente uma dor no coração pelo apoio ao idiota. Dia sim, dia não, vejo gente carregando o peso da culpa, imaginando a reação dos velhos se os filhos fossem vítimas da violência extremista.

“Sabe, eu já pensei em vingança, acredita? Pelas noites maldormidas nos primeiros anos de vida, pelos meus tempos de balada quando chegava de manhã em casa, pelas vezes que respondi em voz alta na rebeldia adolescente”, um amigo se indignou, semana passada, na mesa do bar.

Seu pai e sua mãe lamentam, acreditam que o filho “virou comunista” por influência da esposa. E se surpreendem a cada fala tão educada da nora. Nos grupos de WhatsApp, as mentiras bizarras (passei do tempo de repetir o termo fake news) não tratam “os vermelhos” como seres humanos que dormem, acordam, transam, peidam, cagam e mijam como qualquer outro da mesma espécie.

Quando eu era criança, meu pai e minha mãe diziam que não digitavam quarenta e cinco nem no micro-ondas. Era só piada, porque nem micro-ondas nós tínhamos. Os anos passaram e dei sorte de tê-los seguindo o próprio ensinamento de não acreditar em tudo na internet e mudar radicalmente a visão de mundo. A vida fica menos insana quando o bom senso é hereditário.

Se você corre o risco de ter o nome retirado do testamento familiar caso declare o voto publicamente em qualquer candidato entusiasta da democracia, sinta-se abraçado, sinta-se abraçada. E o meu desejo sincero de que os almoços de domingo, a ceia natalina e até os encontros em jogos da Copa do Mundo, tão pouco tempo depois das eleições, sejam bem mais fraternais do que uma campanha eleitoral.