Casos isolados

2 de junho de 2020 1 Por Leandro Marçal

Caso isolado 1: Primeira metade da década de 1990. Sala de espera no consultório pediátrico. Eu tinha os cabelos bem claros, enrolados. Sempre fui muito parecido com meu pai, um branco de olhos verdes. Ele estava trabalhando, fui com minha mãe, mulher negra. A recepcionista preenche a ficha e pergunta se ela é minha babá. Minha mãe mostra os documentos sem responder. O silêncio é quebrado. “É só aguardar, senhora”, diz a recepcionista, com o rosto corado.

Caso isolado 2: Primeira metade da década de 2000. Esquina de casa, 5h50. De boné, meu pai vai trabalhar de bicicleta. Cruza com uma viatura, é parado. Seu veículo é jogado no chão, a mochila também, ele toma um chute nas pernas, olham os documentos, ficha limpa. Vão embora. A bicicleta teve poucos arranhões, a marmita foi revirada, não tem mais almoço. Foi confundido com sei lá quem. Tempos depois, um silêncio estranho na rua. Um barulho no portão, meu pai foi ver. Uma viatura em cada esquina. Há um mandato, vão invadir o terreno com três casas se ninguém abrir. Calma, pede meu pai. “Ninguém vai atirar no cachorro, não, peraí, vou prender”, diz. Tínhamos um dogue alemão preto. Entram em casa, eu assistia a um jogo do Palmeiras na Band. Tomo um susto, minha irmã mais nova também, acordou com um desconhecido apontando-lhe uma arma. Buscavam o Primo Distante. Anos antes, ele foi preso na mesma esquina em que meu pai foi abordado e ficou uns seis meses recluso. Seus pais, tios e avós não quiseram pagar os dois mil e poucos reais que pediram para soltá-lo. Por fora, ninguém poderia saber. Nunca mais vi o Primo Distante e evito passar em frente àquela casa.

Caso isolado 3: Tempos de escola. Todo mundo tem apelido, ninguém escapa. Os meus são relacionados à cabeça grande. Desenhos, personagens, nomes de famosos. Essas coisas. Ninguém tem apelido por ser branco. Mas para alguns, neguinho, churrasco e sombra são os mais leves. Há comparações com personalidades negras, mesmo se não houver semelhanças concretas. É estranho, vou demorar para entender.

Caso isolado 4: 2004, talvez? Minha mãe está brava comigo. Muito. Não tem aula na segunda-feira pós-eleições, mas ela foi chamada na escola, eu deveria ir com ela. “Seu filho fala demais”, diziam. No meio do caminho, encontrei o Aluno J., colega de classe com problema de dicção, motivo de apelidos e chacota. O Aluno J. não é branco, como eu. Vamos conversando, coisas de escola, ele ri porque minha mãe está brava comigo. E com razão. Na porta da escola, a inspetora me barra e deixa o Aluno J. entrar. Ele acha estranho. Minha mãe questiona a inspetora. “Você só vai entrar com sua mãe, amanhã”, ela diz, sinalizando para o Aluno J. entrar pelo portão do estacionamento, ao lado da minha mãe, que não é mãe do Aluno J.

Caso isolado 5: 2008, acho. Reunião de pais. Dessa vez, minha mãe não está tão brava comigo. Tirei notas boas, como ela me cobrava. O Professor C. diz que a reunião está encerrada e devem ficar na sala as mães que desejam ouvir comentários – não estava na moda falar feedback – sobre filhos e filhas. Minha mãe, claro, permanece na sala. Quando ela diz que é mãe do Leandro, o Professor C. levanta as sobrancelhas, pergunta se ela está na sala correta. “Que eu me lembre, só tem um Leandro nessa sala, mas não deve ser seu filho, ele é branquinho”, diz, enquanto vasculha a lista de chamada.

Caso isolado 6: 2009, possivelmente. Eu tinha meu primeiro emprego de carteira assinada e de vez em quando sobrava algum dinheiro para os fins de semana. 18 anos. Fomos no carro do Amigo C. até o emissário submarino, em Santos. Tomar umas, jogar conversa fora. Também estavam o Amigo J. e o Amigo R. Encontramos por lá a Amiga E. Ao irmos embora, uma viatura deu a volta e nos parou. Um policial não gostou da forma como o Amigo J. olhou para ele. Foi o que ouvi. O Amigo C. é branco, como eu, e foi acompanhado até o carro para o procedimento de rotina. O Amigo J. é negro e sua revista é mais minuciosa, com um puxão na camisa e um soco no peito. Eu e o Amigo R. nos olhamos, é melhor ficar em silêncio. Durante a revista, ouvi por favor e obrigado. A Amiga E. se irrita, diz que seu pai é militar e que aquilo era um absurdo. Então, chamam reforço. Deveríamos ser muito perigosos. Somos liberados depois de uma hora e meia, acho. Outro policial, mais novo, disse para mim e para o Amigo R. que nessas horas é melhor ficar quieto, por segurança. O Amigo J. virou defensor ferrenho do governo federal e não viu anormalidades na forma como foi abordado.

Caso isolado 7: Anos 2010. Bêbado, fui zoado pelo Amigo H. Respondi com uma frase racista, admito. Minha consciência pesou. Tempos depois, em uma festa, pedi desculpas. Ele pergunta o motivo. Eu respondo. Ele não entende. Eu explico. Minha fala foi racista, isso é inaceitável. “Racismo nisso? Desencana, já ouvi coisa bem pior, a gente tava na zoeira”. Balanço a cabeça, envergonhado. Ele pede para buscar outra cerveja no freezer.  

Caso isolado 8: 2012 ou 2013. Um relato no Facebook me chama atenção. O Repórter C., meu amigo dos tempos de jornal, teve problemas em frente a um estádio. Briga de torcidas, bombas e tudo mais. Ele puxou o celular para filmar, como qualquer bom repórter. Um policial o abordou, mandando sair dali. O Repórter C. disse que estava trabalhando, o policial disse que também estava, mandando-o embora dali. Quando outro agente chegou, seu celular foi tomado, o material jornalístico apagado e uma bomba de efeito moral colocada dentro de sua calça. “Você não é macho? Quero ver ser macho agora”, disseram. O caso repercutiu. O Repórter C. tem uma carreira de respeito. 

Caso isolado 9: Depois de 2013. Rodinha de amigos, só homens. Mulheres eram o tópico da vez. O Pegador B. citou vários nomes, como se fizesse uma lista de compras. Ao fim, disse que nunca transava com mulheres negras. Perguntei o motivo. Ele não soube responder. “Não é que eu sou racista, não, nada disso. Mas sei lá, tem um negócio que não sei, não gosto. É gosto mesmo, sabe?”, explicou, antes de mudar de assunto.

Caso isolado 10: 2015 ou 2016. Eu tinha um HB20 preto. Foi um esforço para comprá-lo, uma tristeza vendê-lo. Tinha bebido umas com o Amigo B. em Santos, em frente a um boteco. Na volta, nos pararam em uma blitz. Eu sei, é péssimo beber e dirigir, não há “só um pouquinho” que seja aceitável. Pedem minha carteira. Mandam sairmos do carro. O Amigo B. é negro, mesmo que o chamem de pardo. Ele foi revistado mais de uma vez. Só olharam minha carteira, com muita cordialidade.

Caso isolado 11: Entre 2016 e 2017. Semana do Natal. Eu e uns amigos fomos distribuir cestas para moradores de rua. Perto de um túnel, tiraram fotos com dois deles. Eu me recusei, não gosto disso. Entrei na rua errada, fui fazer um retorno, coisa assim. Estávamos em dois carros. Uma viatura nos parou. Estávamos em cinco ou seis pessoas. Eu era o único branco. Deram uma breve olhada na minha mochila, fiquei constrangido quando caiu um presente que daria, em segredo, para uma moça na festa daquela noite. Não fui revistado, me trataram com cordialidade.

Caso isolado 12: Ano passado. O Conhecido G. foi preso. Ele dividia o aluguel de um carro para transporte em aplicativos. O Conhecido G. fazia as corridas durante o dia, o amigo do Conhecido G. à noite. O Conhecido G. esqueceu o RG no carro antes da troca de turno. O amigo do Conhecido G. se envolveu, não sei de que forma, em um assalto a um estabelecimento. Usaram o documento do Conhecido G. como prova do crime. Mesmo ele provando que estava em casa naquela noite. Mesmo sem aparecer nas filmagens captadas por câmeras de segurança. Mesmo com um punhado de testemunhas depondo a seu favor. Mesmo com muitos mesmos. Ninguém duvida que o Conhecido G. é negro.