Vacina pouca, meu braço primeiro

4 de abril de 2021 1 Por Leandro Marçal

Quando li reportagens sobre empresários tomando vacina às escondidas em Belo Horizonte, não fiquei decepcionado ou surpreso. De onde pouco se espera é que não sai nada, mesmo. Não sou mais tão inocente para me espantar com furadores de filas no país das carteiradas.

O caso me lembrou J., hoje um amigo distante. Empresário, subiu na vida com seu comércio, comprou carro, clareou os dentes, viaja com periodicidade invejável. Deu entrevistas e palestras sobre a história de ascensão e se autointitulou um exemplo para as crianças do bairro.

Nos últimos meses, J. se indignou com as restrições impostas a seu empreendimento e a outros da cidade para conter o espalhamento da covid-19. Sábado passado, seus stories no Instagram mostravam-no participando de um protesto contra o governador à tarde. À noite, havia sorrisos e cantoria no churrasco com carne de primeira e aglomeração.

J. ganha bem mais do que eu e outros amigos. Não se sente cidadão, com obrigações coletivas. É apenas um consumidor em todos os lugares frequentados. Se está pagando, tudo pode. Ficou mais revoltado com a possibilidade da falsa enfermeira ter usado soro fisiológico para enganar os novos ricos otários do que com a falta de civilidade dessa casta social. Se tivesse oportunidade, também daria um “jeitinho” para vacinar parentes e amigos. Assim, ninguém daria desculpas para se ausentar nos churrascos de sábado.

J. acha um desaforo recusar o convite ao banquete regado a vinhos caros e picanha, comprada num esquema com o açougueiro do bairro, que lhe cobra o mesmo preço das carnes de segunda e dá prejuízo ao mercadinho. Segundo boatos da vizinhança, o comércio de J. tem cambalachos para baratear as contas de luz e recebe investimentos polpudos de empresários graúdos, envolvidos em negócios inomináveis e imperdoáveis.

Para J. e uma parcela de meus conterrâneos, o dinheiro tudo permite. São capazes de colocar a culpa nos altos impostos para justificar suas próprias cretinices. Nenhuma reivindicação coletiva lhes parece suficiente para acabar com o barata-voa brasileiro.

Não se envergonham de justificar a violência policial e judicial contra os mais pobres; acreditam que a vergonhosa desigualdade é culpa da preguiça dessa gente; se apoderam do poder público, mas condenam o Estado quando ele faz o mínimo para a ralé, para o populacho.

A ciência ainda não catalogou todas as espécies de cretinos da sociedade brasileira. Certamente, o tipo capaz de desembolsar uns trocados para furar a fila da vacinação é um dos que mais contribui para fazer disso aqui uma selva.

J. acredita fazer parte da autointitulada elite, incapaz de olhar para o próprio rabo e entender que o dinheiro não compra cidadania, civilidade, consciência, cultura e respeito à coletividade. Coitado de J.

Coitada dessa gente. Coitados de nós.