Uma vida simples

7 de maio de 2020 0 Por Leandro Marçal
Vi esse livro nascer, nas primeiras páginas, entre idas e vindas em um Curso Livre de Escrita Literária.

“Foi então que baixou nela a sensação de desconforto, uma névoa nos olhos que impedia de enxergar o caminho. A impossibilidade de se prever o que pode surgir quando o próximo passo for dado. E havia a zona segura, uma linha tênue que fazia o corpo de Vó Romena ter estremecimentos. Bastaria um passo em falso para pôr a caminhada inteira em confronto com aquela natureza desconhecida. Assim ela se mexia em modos e palavras. Certo receio brotava sem querer e a deixava com as mãos suando frio, demasiadamente.”

O trecho soa familiar em tempos de quarentena. Perceber o descontrole sobre o futuro dá medo. É como descer a serra sob neblina, enxergando, quando muito, dois poucos metros à frente. Não há comboio, a visão é turva.

O fragmento do livro Uma vida simples, escrito por Maria Bernadete Bernardo, minha grande amiga do Curso Livre de Escrita Literária de Santos. Por isso, é importante deixar claro que este texto não tem a menor pretensão de fazer as vezes de resenha ou crítica, apenas reiterar o quanto a leitura de um livro que vi nascer me fez mais vivo.

Digo que vi seu livro nascer porque ele fez parte do projeto do último ano do curso. A cada encontro, o grupo de pouco mais de 10 escritores fazia os comentários sobre os projetos em andamento dos outros colegas. No projeto de Maria Bernadete, materializado na publicação pela Editora Recanto das Letras, a protagonista é Vó Romena. Aos 86 anos, a viúva se vê deslocada para a casa onde o filho Antonio mora com a esposa, Isadora, e a filha, Luisa.

Vó Romena deixa para trás a vida em Nascente da Prata, no interior do Espírito Santo. No pequeno povoado, teve uma vida serena com o esposo Joaquim, morto há dois anos. No novo ambiente, urbano, será difícil se sentir em casa.

“A vida tinha espaços a ser preenchidos, e Vó Romena tentava se habituar e preencher os espaços que a mudança havia trazido para ela.”

É curioso notar que a maior conexão da octogenária não é com o filho advogado, sempre ocupado. Tampouco com a nora, professora, que não lhe dá muita atenção. É Luisa, a neta, quem mais para e ouve o que Vó Romena tem a dizer.

Talvez por isso a leitura de Uma vida simples tenha feito ressoar tanto em minha cabeça a música Desci a ladeira, do Projota. Um trecho, em específico, poderia perfeitamente ser cantado pela protagonista: “Eu desci a ladeira pra ver o que tinha por lá / E voltei pra poder te contar que eu sempre vou voltar / Não há lugar melhor no mundo que o nosso lugar…”  

“Quanto mais os pensamentos tomavam conta dela, menos falava. Se pegou por várias vezes encenando mentalmente uma fala que não conseguia verbalizar. Luisa chegou a ouvir um som gutural. Pensou que a vó estivesse falando com ela, mas a vó disse que não, que não era nada.”

É claro que a mudança causaria incômodo. Afinal, são 86 anos de simplicidade, sem ansiar pela correria da grande cidade. Nela, somos individualistas, pensamos demais no próprio umbigo. Talvez por isso, Antonio demore a entender que sua mãe, lúcida, não deve ser tratada feito criança.

Quantas vezes não tomamos decisões autoritárias por um suposto bem dos mais velhos? Eles até podem tomar conta dos próprios narizes, mas nos parece mais cômodo manipular sua vida por caprichos de quem não quer ter muito trabalho.

Em um país que insiste em não respeitar a História – vide o jumento-mor que ocupa a presidência da república –, é comum o repúdio à velhice, à impaciência com a contação de histórias pelos que viveram muitas décadas, o desrespeito com quem já não tem o mesmo vigor físico de outros tempos. O tempo é ladrão, diz meu pai. Usar o adjetivo velho como xingamento diz muito sobre como tratamos quem rejuntou o piso no qual gastamos solas de sapato.

“Todo corpo um dia murcha. É a natureza, e ninguém pode escapar. As árvores parecem viver exuberantes por mais tempo porque as folhas caem e novas folhas chegam devagar, quase invisíveis, e outra incorporação de juventude se processa e de novo e de novo. Com gente é diferente, porque a renovação é por dentro; a juventude do corpo é percebida nos olhos e nas palavras de sabedoria ditas na medida certa.”

Espero viver muito, ser um octogenário para concordar ou discordar desse meu texto escrito antes dos 30. Na semana em que li a história serena que se passa entre novembro/1972 e março/1973, o nonagenário Lima Duarte comoveu milhões com um vídeo ao se mostrar compreensivo com a atitude suicida de Flavio Migliaccio. Dois artistas, dois velhos de muito respeito.

Uma vida simples me fez refletir ainda mais nesses dias em que não saio de casa para evitar o mal aos meus. Me fez pensar no tempo, na vida, na morte.

Ter seu livro em minhas mãos, Maria Bernadete, me fez compreender um pouco mais de você, de mim, de tanta coisa à minha volta. A literatura tem muito a ensinar.

“Na vida, não se pode apressar nem retardar nada. Quando é chegada a hora, a que é definitiva, inescapável, é preciso fazer dela o melhor que se pode.”