Um pequeno comércio na cidade invadida

27 de março de 2020 0 Por Leandro Marçal

– Joquinha, Joquinha! Baixa as portas, o exército inimigo chegou! Vambora!

– E minha loja, como fica?

– Tá louco, Joquinha? O exército inimigo é sanguinário, porra! Não viu na TV?

– E você acredita na TV? Eu tenho conta pra pagar, meu amigo.

Joquinha espreme os olhos e procura algo no balcão. Suspira, mete a mão no bolso e puxa o celular. Coça a cabeça, encontra os óculos pendurados por uma cordinha no pescoço.

– Mas Joquinha, olha pra rua.

Pessoas fogem, desesperadas. Velhos e velhas, crianças, homens e mulheres, cadeirantes e seus parentes. Uma gritaria enlouquecedora.

– Bando de cuzão, manipulados. Se vagabundo tentar invadir, é chumbo. Tudo armação, interesse, vê o vídeo até o final. E depois, eu quebro?

Na tela do celular, um homem olha para a câmera, desmente o que chama de farsa da invasão do exército inimigo, que nem é tão inimigo assim. Fala em prejuízos e desemprego futuro se os medrosos fugirem da morte. O som é abafado pelo barulho dos tiros na rua e as pessoas correndo. O amigo devolve o aparelho.

– Se assustou? Morre gente todo dia, para com isso. Olha meu prejuízo com a loja vazia, os desocupados nem vieram trabalhar hoje, depois reclamam.

– Me desculpa, Joquinha, vou embora.

– Vai,vai. Depois não me pede emprego.

– Que emprego, Joquinha? Acabou tudo, tudo!

Outra bomba lá fora. Essa foi forte. O barulho diminui. Um grito e o amigo de Joquinha é metralhado em frente à loja.

– Eu avisei, paciência. Já era, o exército agora vai botar ordem nisso.

Caído no chão, o corpo de Joquinha parece uma peneira. Mais de 80 tiros. Soldados invadem a loja, derrubam as prateleiras, levam mercadorias. Quando vão embora, uma bomba explode lá dentro. Silêncio na rua, os corpos se amontoam.