Humanos

29 de junho de 2019 0 Por Leandro Marçal

O vigilante do supermercado dá bom dia e deseja sucesso no trabalho, são 5h30 e as ruas estão escuras. Olheiras e rostos amassados tomam conta do ponto de ônibus. A recém-aposentada apressa o passo, continua trabalhando e não se vê parada em casa; chama atenção por toda a viagem, conversando no assento reservado e soltando uma gostosa risada, improvável para aquela hora. O estagiário se apressa, não pode correr o risco de um atraso, acredita na efetivação ao fim do contrato. A mãe cochila com o balanço do ônibus, abraçada aos dois filhos no colo, as mochilas de rodinhas encostadas em suas pernas. Uniformizado de azul com riscas horizontais fluorescentes, o trabalhador braçal reclama do patrão e é rebatido com piadas sobre o colega puxa-saco e as dores do serviço braçal. O careca excêntrico de camisa estrambólica não tira a cara do livro pela metade. A curiosa ao lado não entende o porquê de tanta leitura, arrasta a tela do celular, alternando entre WhatsApp, Facebook e Instagram. O desinteressado no entorno assiste a vídeos de pegadinhas do João Kleber, sem fone, irritando uns e outros ao redor, que evitam expressar o incômodo com a risada esquisita do apresentador. O recém-adulto usa um bigode parecido com a mistura de leite e achocolatado, cochila sem medo de encostar a cabeça no ombro esquerdo da mulher ao lado. Ela não suporta pegar ônibus diariamente e lidar com essa gente espaçosa, mas perdoa o garoto que deve trabalhar e estudar, sem muito tempo para descanso. Mulheres com roupas curtas em meio ao frio encaram os passantes em pequenas portas, que dão para escadas, que dão para quartos pouco higienizados, que dão para lhes pagar as contas, que ainda hoje no começo da noite começa um novo expediente com gente desconhecida e arriscada. Os cumprimentos de bom dia se multiplicam no escritório, a repetição excessiva e desnecessária é inescapável aos que temem fofocas sobre arrogância e falta de educação. As palavras “fineza” e “atenciosamente” surgem nos e-mails como cobranças travestidas de pedidos de favor e despedidas cordiais do ambiente corporativo. As recepcionistas mudam de assunto quando o assunto chega à copa, fingem se preocupar com os perigos do açúcar da máquina de café, reclamam da pá transparente para misturar o adoçante ao cappuccino e saem com seus copos de plástico da empresa que investe milhões em responsabilidade social e palestras sobre consciência ambiental. Desavisada, a recém-contratada pergunta onde vão almoçar aqueles dois que todos desconfiam estar se pegando às escondidas no motel próximo ao escritório. Os funcionários optam por caminhar juntos pela calçada, com medo dos assaltos na rua estreita, ataques dos moradores de rua, usuários de crack e vendedores de cartões de crédito do varejo do centro da cidade. O chefe faz um comentário assentido pelos funcionários, ninguém ousa discordar. O porteiro não se incomoda com a ausência de despedidas. No estacionamento, a dona de dez gatos se compadece com o cachorro de rua andando torto; ele não tem muita vontade de viver e seu olhar dá pena; ela gastou seu pouco salário levando-o ao veterinário e chora toda noite por não ter condições de criá-lo. Os colegas de baia conversam sobre amenidades no ônibus parado no trânsito; o mais tímido preferia ter evitado o constrangimento e não sabe como colocar o fone para ouvir seu podcast favorito sem passar uma imagem de antipático. O motorista toma uma fechada de um carro popular e é repreendido por passageiros irritados pela freada brusca. A avó sente o coração palpitar e conta ao marido como eram os jovens que a seguiam em uma moto. O deprimido passa na padaria e compra um bolo de aipim para ter algum momento de alegria depois de cobranças indevidas no trabalho. O engravatado afaga a cachorra velha que o recebe com festa, dá ração, responde à mensagem da namorada e joga a mochila no sofá; está cansado, não irá à academia, só quer dormir.