Se eu for intubado

25 de janeiro de 2021 2 Por Leandro Marçal

Minha família falará comigo em uma videochamada antes de eu ser submetido ao delicado procedimento. Ficaremos emocionados e com medo, especialmente porque eles terão notícias de mim apenas uma vez por dia. Tentarei ser pragmático, deixando instruções claras sobre o que fazer com a reserva financeira dos últimos anos. Explicarei didaticamente onde está o envelope pardo, com um papel sulfite reciclado cheio de anotações sobre as senhas de contas bancárias, cadastros, e-mails e acessos às redes sociais. Pedirei paciência e falarei devagar, porque o comprometimento do pulmão me tirará o fôlego no meio do papo.

Se eu estiver no hospital da cidade, é possível que algum conhecido dê informações extraoficiais sobre meu estado de saúde. Marcarão missas por minha recuperação. Virão perguntas de um primo distante, uma tia há muito tempo sem contato se reaproximará. Qualquer toque no telefone dará taquicardia. Em casa, todos farão exames. Os dias ficarão mais lentos.

Meu amigo descolado ficará aflito. Há alguns meses, vem falando sobre a necessidade de preservar a saúde mental. Por isso sai às sextas, aos sábados e aos domingos. Sem culpa, nem máscara. Já viajou desde o início da pandemia, frequentou festas em ambientes fechados e postou stories posando para câmeras frontais, enquanto cantava músicas de gosto duvidoso, aglomerado na balada. Sua vida seguirá normalmente até receber a notícia da internação. Mesmo assim, fará posts rogando a Deus por minha saúde.

Minha amiga politizada, que no começo da pandemia xingava o comportamento cretino de Bolsonaro, também ficará preocupada. Depois de passar meses enchendo as redes sociais de hashtags contra o atual governo e compartilhando textões sobre panelaços, passou Natal e Ano Novo com as migas e expôs generosos drinques em ambientes fechados. Nunca se sentiu constrangida quando rodeada de gente ignorando os protocolos por livre e espontânea vontade e irresponsabilidade. Mesmo assim, estará torcendo por minha pronta recuperação.

Meu colega de trabalho piadista ficará espantado. Eu sei, e todos da repartição sabem, que ele foi a festas clandestinas em meio às parcas proibições na cidade, disputou jogos de futebol enquanto batíamos recordes de mortes diárias e sempre deu um jeito de incluir a Peste em suas anedotas de mau gosto, deixando sem jeito a funcionária da baia ao lado. Mesmo assim, publicará comentários esperançosos nos posts de minha família com atualizações sobre meu estado de saúde.

Meu tio bolsonarista ficará incrédulo. Dará um tempo nas postagens do Facebook contra a “vachina”, contra João Dória, contra jornalistas como eu, a favor da cloroquina, a favor da ivermectina, a favor da azitromicina. Mesmo sem saber a diferença entre intubado e entubado, marcará presença na corrente de orações pela melhora do sobrinho.

Minha ex-namorada negacionista ficará apreensiva. Deixará de falar na covid-19 como fruto de interesses das grandes corporações, parará de criticar a “vida limitada pelo pânico dessa tal pandemia”, não dará mais atenção aos vídeos com teorias da conspiração, esquecerá Lula e o PT por uns dias, passará a culpar o atual “governo” pelo atraso na vacinação em massa e o genocídio transmitido pelas redes sociais. Mesmo assim, tentará esconder lágrimas escapando ao olhar nossas fotos em viagens do passado.

Se eu for intubado, espero ter a sorte que milhares de conterrâneos não tiveram. Se eu for extubado, serei obrigado a agradecer a torcida dos irresponsáveis.