Racismo e polêmicas

12 de abril de 2021 3 Por Leandro Marçal

Culpar a bebida alcoólica por atos reprováveis é sempre um caminho confortável, mas naquela noite estávamos realmente bêbados. Conversávamos na areia da praia quando o Amigo de Aparelho chegou, escondido da namorada e mais embriagado que o restante do grupo. No meio do papo sorridente, começou a tirar sarro da minha aparência física. Magro, careca e cabeçudo, sou atraído por apelidos desde sempre. Acuado, balancei a cabeça para os lados e esfreguei meu braço com indicador e dedo médio unidos, numa clara alusão à sua pele negra retinta.

Me arrependi amargamente do gesto racista. Não me alterei tanto a ponto de esquecer a merda que fiz. Cor da pele não é piada. Poucas semanas depois, na festa de casamento do Amigo Responsável, chamei o Amigo de Aparelho num canto e pedi sinceras desculpas. Não deveria ter respondido daquela forma e o perdão não anularia a atitude repugnante, mas queria deixar claro meu arrependimento. Errei e reconhecia a falha grave. O Amigo de Aparelho estranhou, disse lembrar pouco daquela noite e justificou com um “era só zoeira” para o que me tirou o sono por seguidas noites. Pegou outra cerveja na geladeira e voltou para a mesa com os mesmos amigos da noite na praia.

Não foi uma polêmica. Cometi um ato racista, como tantos ao longo da vida. Mesmo que sem intenção, mesmo que sem perceber. Quantas vezes, no tempo de escola, não segui a manada e criei apelidos com alusão à cor da pele de colegas de classe? Cresci, estudei, evoluí, sigo aprendendo. Já escrevi sobre “casos isolados” em que até a minha mãe foi discriminada racialmente. Filho de mulher negra, ouvi e presenciei frases inaceitáveis, que demorei bons anos para digerir e depois vomitar. Mesmo assim, também tive meus atos inaceitáveis, sem direito à terceirização da culpa.

Brancos, como eu, têm a horrível mania de se acharem no direito de ditar regras sobre como vítimas de racismo deveriam reagir. “Era para ter reclamado na hora”, berram uns desavisados. “Não foi essa a intenção”, tentam justificar outros, sempre com um paninho na mão para limpar o encardido da branquitude.

Essa palavra, aliás, pode causar arrepios, numa tentativa esdrúxula de colocar em prática o “mas nem todo branco…”, mesmo que volta e meia tomem de exemplo uma pessoa negra como se esta representasse toda a negritude do mundo.

Nos casos de racismo escancarado na televisão ou nas redes sociais, penso no esgotamento mental de quem explica milhões de vezes sobre o quão errado é rir de certos cabelos, fazer alusões à criminalidade, hipersexualizar e segregar pessoas negras.

Nós, brancos, e principalmente nós, homens brancos, nos achamos no direito de sermos perdoados por um tipo de “racismo culposo”, como se os séculos de escravidão e os índices vexatórios de desigualdade racial no Brasil não fossem suficientes para criarmos vergonha na cara. Agimos feito adolescentes mimados, sentindo-nos adultos formados para sair de casa e curtir a vida adoidado, mas recorrendo aos papais e mamães passadores de pano quando a fatura vem.

Não que isso surpreenda: somos desgovernados por um presidente de conhecidas falas repugnantes e racistas por décadas, sob o carimbo de “polêmica” por parte de certa imprensa, cúmplice da tragédia dos nossos dias e dos dias futuros. Para a gentalha estúpida, só lhes parece racismo quando um negro é xingado de macaco, açoitado num poste em praça pública ou mantido preso numa senzala.

Caso essas mal traçadas linhas tenham feito sentido, não esqueça de levar em consideração a pele branca do cronista, com toda a carga de privilégios destinada a essa gente no Brasil. Na dúvida, ao se deparar com casos de racismo travestidos de “polêmicas”, ouça pessoas negras, leia pessoas negras, fale com pessoas negras. Elas têm muito a nos ensinar. E não apenas sobre temas raciais, é bom deixar claro.

Eu aprendo muito. E seguirei aprendendo. Culpar a bebida, o “mimimi” ou um mundo supostamente mais chato são desculpas esfarrapadas que não convencem o bom senso.  


Obviamente, a crônica acima não tem a pretensão de esgotar um tema tão relavante. Conversando com gente querida antes de publicá-la, optei por incluir links relevantes sobre o tema e algumas dicas. Novamente: os links tampouco pretendem fornecer uma bibliografia completa sobre o assunto. Espero ajudar no debate. Caso tenha interesse em escrever algo nesse sentido, é só entrar em contato: marcal_91@hotmail.com.