Querem me matar

1 de maio de 2020 0 Por Leandro Marçal

Quando ouço relatos de pessoas ameaçadas de morte, tento imaginar, e só imaginar, o medo constante, a desconfiança ao sair de casa, a mudança de rotina, de casa e até de país nas situações mais extremas. A covardia é a mais cretina das desumanidades.

Nos últimos dias, percebi que querem acabar com minha vida e de meus familiares. Antes existisse um único vilão ou grupo organizado. A ameaça é difusa e por isso me causa mais revolta.

As pessoas que querem me matar seguem a vida normalmente, como se não vivêssemos um período histórico e aterrorizante, com um vírus minúsculo destruindo vidas diariamente. Elas até têm acesso a informação, mas se fazem de besta, pensam ter superpoderes e que nada de mal irá lhes ocorrer.

São essas pessoas, as que saem para dar uma corridinha na rua com a desculpa de cuidar da saúde e quebram o isolamento social recomendado pelos especialistas, reúnem-se em volta de mesas com cerveja e uísque falso e carne de segunda para se embebedar no fim de semana, não usam máscara nas ruas como se ela fosse mero adereço estético, postam stories e status olhando para a praia como se os dias ainda fossem normais, se aglomeram em jogos de futebol e têm a cara de pau de tirar fotos no encerramento dessas partidas irrelevantes, entendem esses dias vazios de ocupações como férias e até se fingem de esclarecidas em grupos de WhatsApp. São essas pessoas que querem me matar.

Elas não ligam se ontem minha dor de cabeça não parou e hoje a febre ainda não foi embora e a ansiedade atingiu picos pré-hospitalares com medo da piora, não se importam se o pulmão comprometido de minha mãe por uma tuberculose há alguns anos lhe põe no grupo de risco, dão de ombros se meu pai à beira dos sessenta anos não tiver acesso a uma vaga na UTI do hospital da cidade pela curva ascendente de contaminações e mortes.

Para essas pessoas, não há problema se eu tiver uma piora daqui a poucos dias, não conseguir respirar e morrer sem ar, morrer sem a possibilidade de amenizar esse afogamento, morrer sem acesso a um respirador. Para essas pessoas, meu velório rápido e enterro mais rápido ainda para evitar novas contaminações será superado com uma simples e descartável selfie dos bons tempos de convívio .  

São pessoas com as quais já me relacionei, me chamaram de amigo ou amor, conversaram comigo sobre assuntos banais e sérios, dividiram reuniões em escritórios com ar condicionado no talo, foram a festas de aniversário onde falamos mal de outros convidados, pediram que assinasse um de meus livros e até leem esta crônica. São pessoas comuns, sem cara de vilão, que não estão nem aí e por isso ameaçam minha vida. Sua vida. Nossas vidas. Algumas cometem o autoengano de dizer que sua saída foi para algo urgente, necessário. Outras vivem uma fase de negação sem fim.

É possível que a gente passe mais e mais tempo sem sair de casa pela irresponsabilidade dessas pessoas, que fingem não saber que além de mim, também ameaçam a vida de seus familiares, cônjuges, filhos, netos, amigos e outros que dizem amar. Dizem amar, mas não agem como se amassem. Porque quem ama não ameaça aos seus. Nem o bairro, muito menos a cidade, tampouco a humanidade.   

Essas pessoas, provavelmente, seguirão me ameaçando. E quando essa quarentena passar, meu distanciamento social delas será voluntário, para muito tempo depois da pandemia.