Profissão: escritor

5 de setembro de 2022 3 Por Leandro Marçal

Na hora de preencher a ficha cadastral, a recepcionista perguntou minha profissão. Passei uns bons segundos pensando em como responder e veio à memória o papo com um colega de ofício, pouco tempo depois do lançamento de seu primeiro livro.

Na conversa, relatei minhas gaguejadas ao explicar meu ganha-pão. Pareço um carro na segunda marcha, pedindo a terceira para o motor ganhar força e seguir em frente. Já não me sinto mais à vontade para me intitular jornalista só pelo diploma do curso superior. Redator publicitário é esquisito também e demoraria tempo demais para explicar os “freelas” com mais textos complementando a renda.

Meu amigo recém-publicado foi categórico. “Perde essa vergonha aí, rapaz. Tu é escritor. Tu escreve um monte de coisas. Umas pra pagar contas, outras não. Mas é isso aí. Tua profissão é escritor, tu é escritor, sem dúvida”, me aconselhou.

A lembrança da conversa surgiu rápida, mas foi tempo suficiente para a recepcionista sair do piloto automático e me olhar por cima dos óculos, como se pedisse para agilizar seu trabalho, como se me jogasse um copo d’água para eu acordar no meio do cochilo.

“Escritor”, respondi. “O quê?”, ela respondeu meio incrédula. “Escritor, sou escritor”, reafirmei em tom enérgico, mas sem levantar a voz.

Com medo de ter falado alto, olhei para os lados. Certamente, as pessoas sentadas, esperando sua vez, me olhavam com deboche. Quem esse idiota pensa que é?, pensariam. Ui ui ui, o careca magrelo se acha, cochichariam umas às outras, pisando na cabeça da minha prepotência juvenil.

Quando a recepcionista indicou que esperasse minha vez, reparei na atenção dos presentes dividida entre os celulares, a televisão ligada no programa matinal e as revistas velhas à disposição. Ninguém se importava com a minha resposta à recepcionista. Eu poderia ter me identificado como traficante ou matador de aluguel, daria na mesma, cada um só queria ser chamado para ir embora dali o mais rapidamente possível.

Semana passada, me perguntaram por que me expus tanto publicando em livro uma história tão particular. Volta e meia, sou questionado sobre minha motivação para textos autorais. Durante uma reunião mensal cheia de papo furado no trabalho, dei uma boa resposta sem perceber e sem ensaiar.

“Sempre tem alguém pra fazer o trabalho sujo. O lixeiro, o coveiro… A gente olha essas pessoas e não sente a menor vontade de fazer o que elas fazem, mas sabe que alguém tem que fazer o que elas fazem. O meu trabalho sujo, digamos assim, é escrever. Nem sei porque escrevo, só sei que escrevo. É o que eu faço”, finalizei em meio ao silêncio geral na reunião por videoconferência.

Deve ter sido bonito esse monólogo. Pelo menos até agora, não custou o meu emprego. De escritor (eu já tinha até esquecido).