Parafusos a mais

2 de agosto de 2020 0 Por Leandro Marçal

Num dois de agosto como este, há seis anos, subi a serra ainda de madrugada. Meu pai dirigia, enquanto dois amigos puxavam assuntos, alguns sem sentido, para me tranquilizar. Às oito horas da noite anterior, comecei um jejum que me impedia até de beber água. Para me ajudar, amigos e amigas com namoradas e namorados levaram refrigerantes, cervejas e bolos para se despedir da minha coluna velha. Aquela típica sacanagem de casais e amizades hoje desfeitas, mas que fazem parte da minha história, nunca renegada.  

Só caiu a ficha quando passamos pelo viaduto entre São Vicente e Cubatão. Vi o radar na pista e me senti mal, pensei num ataque de pânico, mas olhei a infinidade da rodovia dos Imigrantes e voltei ao normal, dentro do possível.

Desde o ano anterior, me preparava para uma operação que corrigiria os 64 graus de inclinação por uma escoliose. Só depois da cirurgia descobri que aquilo era o equivalente a cinco centímetros. Tomei coragem de “ir pra faca” pela confiança transmitida pelo ortopedista Alberto Gotfryd, doutor na acepção da palavra, que me alertou sobre os perigos quando chegasse aos 30 anos que hoje me avizinham. Os dez médicos anteriores só recomendavam fisioterapia, RPG, natação e outras atividades paliativas.

 Nesses meses intermináveis de preparação, fui alertando familiares de um jeito mambembe, fazendo exames indo e vindo para São Paulo, me informando no plano de saúde. Eu tinha um bom emprego que me permitiu os melhores equipamentos em um hospital de ponta na capital do estado. Ainda assim, precisei recorrer a empréstimos para pagar outras questões do procedimento médico.

Uma enfermeira apareceu e me deu um comprimido de preparação para a anestesia. Em menos de cinco minutos já estava grogue, sem falar nada com nada. Entrei na mesa de cirurgia por volta das sete da manhã e a cirurgia terminou às duas da tarde, às três horas a cicatriz de 40 centímetros e intermináveis pontos estava concretizada. A partir dali, 23 parafusos, duas talas e duas travas corrigiam o velho problema. Só para deixar claro: o número de parafusos é ímpar, mesmo, eu não teria nenhum problema de citar o número que treme as pernas dos mais frágeis por causa do jogo do bicho.

Nos últimos cinco anos, sempre agradeci às pessoas que estiveram comigo nos difíceis dias de cirurgia e recuperação, além dos meses de readaptação à nova coluna. Sei que fui muito chato naquela época porque queria sair, beber e me divertir, mas não podia, evidentemente. Esse ano, escrevo aqui para lembrar que ficar internado num hospital nunca é bom, mesmo que ele seja de ponta, os profissionais de altíssimo nível e não faltem equipamentos de qualidade para ajudar na recuperação dos pacientes.

Dormir numa UTI não é nada bom. Foi curioso ter acordado por volta das oito da noite daquele sábado, com pouca mobilidade. Encontrei um controle remoto e liguei a tevê daquele quarto parecendo o Além. O SporTV mostrou que o São Paulo empatara por 1 a 1 com o Criciúma numa falha do Rogério Ceni (ele nunca frangou, mas falhou algumas vezes). Pensei que tinha dado tudo errado. Um enfermeiro ouviu o barulho, foi até meu quarto e me perguntou se eu tomava cerveja. Irritado pela pergunta inconveniente quando não sentia nada da cintura para baixo, disse que sim. O enfermeiro soltou um “não falei?” para outro profissional, me relatando que quando saí do centro cirúrgico, dopado, pedi cervejas e contei piadas ruins. Tinha dado tudo certo.

Na primeira visita de meus pais, eles relataram ter visto o choro de quem falaria pela última vez com um parente querido. Penso naqueles dias quando me deparo com gente ignorando a gravidade dessa pandemia. Coloco a experiência de retirada de sonda como uma das piores que já passei, mas sei que está longe do que passam os pacientes em estado grave. Aliás, o risco da cirurgia era alto e por isso deixei a documentação de seguros e previdência muito bem preparada. Coisa de hipocondríaco. Recebi duas bolsas de sangue e com o passar do tempo desisti da ideia artificial de uma tatuagem. Sempre fui doador e até me sinto mal por não ter feito minha parte nesse ano melancólico.

Por alguns dias, tive dificuldades para me mexer e andar.  As dores nos ossos, musculatura e órgãos internos foram grandes, a ponto de dormir pouco mais de meia hora algumas noites. Tomei uns remédios pesados e tive dificuldades para ler as duas legendas que só eu via na tela de Breaking Bad durante a recuperação.

Voltei a trabalhar depois de três meses, mesmo com a possibilidade de postergar minha licença, como dito pelo atendente do INSS. Queria a vida normal. Seis anos depois, todos queremos. Se essas palavras não fazem nenhum sentido para você e soam como um relato egotrípico, não me importo. Mesmo. Longe de ansiar por uma lição de moral, só peço que tenha cuidado ao sair na rua nesses tempos de usar máscara e lavar as mãos mais do que antes. Proteja-se e a seus familiares.

Também mantenha a postura, evite o sedentarismo. Meu caso foi genético e toda vez que vejo alguém sem tomar as precauções necessárias para evitar dias, semanas, meses numa maca, dependendo de outras pessoas para realizar atividades básicas como tomar banho, fico preocupado. Se não for falta de informação (quase nunca é) ou problema de memória, o desvio pode ser de caráter.

Sou muito grato aos familiares, amigos e ex-amigos que estiveram comigo naqueles dias de cuidado, preocupação e chatice. Acho que eles sabem disso, mesmo que finjam não lembrar. Sem querer ser repetitivo, mas já sendo: cuide-se. Aqueles dias passaram rápido como lembrança, mas pareciam uma eternidade quando vividos.