Obrigado por nada e desculpa qualquer coisa

28 de junho de 2021 1 Por Leandro Marçal

Estacionei o carro pouco depois da esquina, a alguns passos do consultório médico, numa daquelas ruas coadjuvantes do Centro. Avisei minha irmã, dona do veículo. Meu cunhado fazia uma endoscopia. Enquanto esperava lá fora, encarava as casinhas minúsculas e coloridas dividindo a calçada com prédios não muito grandes, não muito pequenos. Um homem passeava com o cachorro, meio distraído, meio desconfiado. Olhei para os dois lados, atravessei.

— Roberto, Roberto. E aí? Firme? 

Roberto baixou os óculos escuros, olhou para o cachorro e o puxou. Me cumprimentou com o receio do toquinho entre mãos fechadas. Só depois de alguns minutos esboçou o primeiro sorriso escondido pela máscara. Só quando lhe dei a certeza de não carregar pedras nas mãos. Só o papo despretensioso de dois velhos amigos, sem contato por uns bons anos.

Mostrei fotos da família, contei as boas novidades e omiti as ruins. Se bem conheço Roberto, ele deve ter feito o mesmo. Lançou o velho olhar desconfiado quando apontei o seminovo da minha irmã, estacionado a poucos passos dali. Um olhar de culpa, talvez. Precisei vender meu carro, meu primeiro carro, depois que Roberto não cumpriu sua palavra e me deu prejuízo nos negócios, anos atrás. O abalo em nossa amizade foi irreversível, o impacto em minhas finanças tem cicatrizado aos poucos, bem aos poucos.

Roberto se despediu com ar de culpa, de arrependimento. 

­— Te chamo depois, teu número é o mesmo ainda, final 94?

— Esse mesmo.

— Beleza. Cara… Vou nessa, a mãe dele já mandou mensagem— apontou para o cachorro — Se cuida e… desculpa qualquer coisa, hein?

Meu cunhado dormia no banco de trás enquanto minha irmã mandava mensagens frenéticas pelo celular para os colegas de trabalho. E eu, que sou um pote até aqui de mágoa, pensava no quanto esse papo me fez bem, mesmo com seus menos de dez minutos.

Semana passada, duas mortes repentinas por covid-19 de pessoas que mereciam viver mais, bem mais, me fizeram pensar no passado, no presente, no futuro. Se houver. Não que eu vá perdoar Roberto pelos prejuízos financeiros e emocionais de nossa parceria profissional, mas remoer não melhora nada nesses tempos em que sobreviver já basta. Vivemos uma travessia longa e quem olha muito para trás é engolido pelas ondas do noticiário frenético.

Desculpa qualquer coisa. Só quem sente muito remorso entrega um salvo conduto como esse. A oportunidade de perdoar até o imperdoável, de absolver o que sequer merecia julgamento. Desculpa qualquer coisa.

Deixei o carro na garagem e ajudei minha irmã a carregar seu marido. Ele ficou caído no sofá. Ela tirou um dinheiro da bolsa e eu recusei. Era um favor, afinal.

— Pelo menos pro Uber, pra não voltar de ônibus.

Aceitei.

— Obrigado por nada.

Ela riu, balançou a cabeça, nós nos despedimos e eu desci os três andares pela escada.