O tempo nesses tempos

31 de março de 2020 1 Por Leandro Marçal
A paisagem mudou por aqui, não sei por quanto tempo.

*A crônica abaixo saiu na seção de depoimentos de leitores da Revista Quatro Cinco Um neste período de quarentena. É o quinto deles, escrito em 25 de março.

“Infelizmente, por ordens do financeiro, a demanda estará suspensa nos próximos meses. Não temos previsão de volta, mas entraremos em contato”, dizia o e-mail do freelance. Tirei os olhos do notebook, afastei a cadeira e levantei. Soltei a respiração e dei dois passos até a janela do meu quarto, que de dia é escritório. Por aqui, home office não é novidade há tempos.

Céu limpo, uma grade atrapalhava a visão. Foi colocada para o gato não pular da altura de quase um andar. Vejo um extenso corredor, com as portas de entrada das três casas em cada lado. Meu quarto divide a parede com o vizinho, um vendedor de frutas. Volta e meia, o cheiro de jaca invade a sala. A estrutura é meio estranha de explicar. Uma quase vila, com inquilinos de dois irmãos locatários.

Alguns dias, ouvimos a vizinhança entrando pelo corredor. Outras vezes, testemunhamos brigas homéricas, como a moça ruiva de óculos dizendo ao marido, um grandão desengonçado, que ele não colocaria a família em risco pelo capricho de comprar pão doce na padaria. 

Ainda olhando pelas grades, pensei nas contas de abril. Sem perspectivas de um emprego fixo, me viro bem com os frilas. Meu pai pagou o aluguel, eu paguei água, luz e internet. Mas e mês que vem?

Lembrei a psicóloga. Viva o hoje, o agor, deixa o futuro para o futuro, costuma dizer. Se quero controlar a ansiedade, preciso me fixar no intenso agora. No intenso agora. Nome do documentário com narração lenta, em voz baixa. Como deveriam ser todos os dias, sem gritos dos bárbaros tentando nos intimidar.

No intenso agora. Vi nas redes sociais perguntas sobre como sairemos dessa e especialistas falando do pós-quarentena. Estranho falar em sair do que mal entramos. É como as festas chatas, em que chegamos e olhamos para o relógio o tempo todo, à espera de um evento mais divertido em outro lugar. No intenso agora, há uma só festa macabra, de presença obrigatória. Nem todos vão aguentar a ressaca, alguns vão embora de ambulância, outros serão ausência nos eventos futuros.

Poucos dias de confinamento e um ensaio para o enlouquecimento em desafios digitais para adiar o tédio. Como essa gente apressada vê as Grandes Guerras? Depois que tudo é História escrita em livro, distante, fica fácil de entender. E no dia após dia, sem saber a data para o fim do terror, sem a certeza de sobreviver ao terror?

Para os menos afortunados, os dias após o terror ainda serão dias de terror, porque todos os dias são dias de terror.

Em um grupo de WhatsApp, vi clamores por uma vacina rápida e reclamações pela cura do inexplicável, que estaria demorando muito. O tempo da pandemia não é o tempo das redes sociais, respondi. Todos falaram ao mesmo tempo. Saí do grupo.

Desisti do céu gradeado. Paciência. Desliguei o computador, desci e fui ver o sol no quintal. O gato que não pula a janela me encarou com os olhos verdes. A rua deserta, o bar com a porta semiaberta sendo lavado, o salão do barbeiro fechado. Triste ouvir o eco na rua meio bairro, meio centro.

Mas vai passar. Assim como o tempo, no tempo dele, mesmo nesses tempos.