O homem de vermelho
Memórias são traiçoeiras. Ficam esquecidas num canto até reaparecerem sem aviso prévio. Como quem vai à padaria comprar cigarros e volta dez anos depois, com naturalidade e cara de pau. Mesmo sem problemas de saúde que afetam as memórias, elas podem ser reconstruídas dentro de nós. Aliás, não “podem ser”: são reconstruídas, sempre são. Conforme o momento da vida, reinterpretamos as memórias, atribuímos novos significados, enxergamos outras simbologias, juntamos diferentes fragmentos, compreendemos diferentes momentos.
Numa memória do comecinho dos anos 2000, a grandiosa loja de carros da minha cidade expôs a Ferrari pilotada pelo alemão Michael Schumacher na temporada de 1996 do Mundial de Fórmula 1. “Num tempo em que nem sonhávamos com câmeras em celulares, uma foto ao lado da relíquia custava 50 reais. Eram tempos duros, não tínhamos essa fortuna”, escrevi em outra crônica.
Vejo Fórmula 1 desde muito novo. Me interesso por questões políticas há bastante tempo. Observo com lupa as tantas desigualdades bem antes de anteontem. Já adulto, essa memória da foto de 50 reais ganhou novos significados.
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Em 12 de dezembro de 2021, o Grande Prêmio de Abu Dhabi encerrou o campeonato mais apertado dos últimos anos. O neerlandês Max Verstappen disputou roda a roda seu primeiro título com o britânico Lewis Hamilton, já sete vezes campeão mundial da categoria mais importante do automobilismo mundial. Quando Hamilton abriu 11 segundos de vantagem para o segundo colocado (o próprio Verstappen), P. enviou uma mensagem num grupo de WhatsApp: “Já era, é octa”. Respondi de bate-pronto: “Só acaba quando termina”. Dito e feito. Uma batida, o carro de segurança na pista, o realinhamento dos monopostos, uns parando nos boxes, outros sem trocar pneus, uma decisão controversa e o neerlandês ganhou o primeiro título mundial na última volta.
Só acaba quando termina. Num tempo de tanta correria, precipitação e reatividade, nunca é demais lembrar: só acaba quando termina.
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Se essas linhas não fossem mero pretexto para tratar da estreia de Lewis Hamilton pela Ferrari no próximo domingo, o cruzamento entre memórias e a Fórmula 1 seria o suposto assunto. Volta e meia, ouço comentários jocosos sobre a chatice de passar mais de duas horas vendo milionários correndo em círculos com seus carrinhos.
Minha resposta é pronta: pilotos de Fórmula 1 não correm em círculos porque não há circuitos ovais, isso é coisa do automobilismo americano. Não fico mais de duas horas vendo corridas, porque esse é o tempo máximo das corridas. Está no regulamento. Se assistir isso for pura chatice, é porque talvez (quem sabe?, vai saber!) eu seja um cara chato.
Voltando às memórias, meu falecido padrinho já me presenteou com a réplica em miniatura de uma Ferrari do fim dos anos 1990. Porque eu gostava do Michael Schumacher, e presenteamos as pessoas com aquilo que lhes apetece. No ano passado, fiz um cadastro no site da equipe Mercedes. Dei o meu endereço e, quando já tinha esquecido do tal cadastro, recebi em casa uma cartinha simples da Europa, com dois cartões: um com a foto de George Russell, outro com retrato e ficha técnica da carreira de Lewis Hamilton. Esses cartões devem ser primos dos álbuns de figurinhas do futebol.
Dentro de mim, segue vivo aquele moleque sem os 50 reais para tirar uma mísera foto com a Ferrari de 1996, segurando na mão a réplica do carro do Schumacher.
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Quando Lewis Carl Davidson Hamilton estreou na Fórmula 1, em 2007, eu não tinha chegado aos 16 anos, ele ainda não era Sir. E eu não entendia a importância do pioneirismo enquanto piloto negro numa categoria tão elitista e conservadora, como são tão elitistas e conservadoras as pessoas envolvidas no automobilismo brasileiro e mundial.
Hamilton igualou Schumacher, aquele do carro cuja foto valia 50 reais, com sete títulos mundiais conquistados. Para muitos, é o maior de todos os tempos. Você não precisa me perguntar se estou entre esses muitos porque sabe a resposta. Hamilton financia iniciativas voltadas à diversidade e tem até uma instituição com essa finalidade. Anos atrás, se ajoelhava antes das corridas como protesto pela covarde execução de George Floyd. Usou um capacete com as cores do arco-íris, em referência à comunidade LGBT, durante um fim de semana de grande prêmio na Arábia Saudita, país mais que avesso à comunidade LGBT. No começo de carreira no automobilismo, seu pai se dividia em três empregos para financiar um sonho. Anos depois, o mesmo Anthony Hamilton foi demitido pelo filho, disposto ao desconforto familiar para aprofundar a profissionalização da carreira.
Em 2022, ganhou o título de cidadão honorário brasileiro. Ser brasileiro é algo difícil de entender, mas fácil de sentir. Mesmo em casos de mera formalidade.
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Alguns textos envelhecem rapidamente. Quando escrevi sobre o meu amigo tarado por Fórmula 1, não imaginava que em pouco tempo notaria mais gente ao redor com essa estranha condição. O J., por exemplo, é ferrarista de carteirinha: só usa roupas vermelhas, torce pelo time de Maranello desde a infância, sofreu (dizem que até chorou) por alguns vexames dos últimos anos. Já o F. é “hamiltista”: sabe a data de nascimento, a cidade onde o piloto nasceu, segue todos os perfis que atualizam a vida do ídolo, tem no status do WhatsApp uma frase usada pelo britânico. Um fanático.
Outro amigo, o V., até tenta posar de sóbrio, mas tem camisas com o Hamilton bem-vestido e de olhar elegante, ele que circula pelo mundo da moda (não é exagero: nos fins de semana de corrida, a roupa que o Hamilton usa vira assunto nas redes sociais e rende cliques de fotógrafos profissionais).
E para quem pensa que Fórmula 1 é vista só por homens, a L. prova o contrário: apaixonada pelo espanhol Carlos Sáinz, substituído por Hamilton na Ferrari a partir dessa temporada, não consegue passar mais que dois dias sem postar sobre a ansiedade por ver Lewis (assim, com intimidade), dentro do carro italiano.
O meu amigo tarado por Fórmula 1, o J., o F., o V., a L., eu e muito mais gente estaremos acordados no domingo à 1h para acompanhar o maior acontecimento esportivo-midiático do ano: a estreia de Lewis Hamilton pela Ferrari no GP da Austrália de Fórmula 1.
O piloto com uma torcida de muita gente que nem liga para corrida de carros vestindo as cores da única equipe de Fórmula 1 com torcida fanática. Não vai ser pouca coisa, vai marcar nossas memórias.