Não se fala de outro assunto

8 de abril de 2021 1 Por Leandro Marçal

Meus raros leitores e minhas escassas leitoras mereciam muito mais do que outra crônica sobre a pandemia. Lá pelo fim do ano passado, quando ficou ainda mais claro que o pesadelo não estava tão perto do fim como chegou a parecer, tentei me distanciar da escrita sobre o coronavírus, as máscaras, o distanciamento social, os hospitais lotados.

Mas o que é o ofício de um pretenso cronista, se não juntar palavras sobre o cotidiano? E que outro assunto é mais atual e urgente, se não a peste assolando o ar?

Quando mais novo, me perguntava como deveriam ser os dias em tempos de guerra. O desafio de distrair as crianças do horror, como no filme A vida é bela. O medo de ouvir uma bomba surgindo dos céus assim, de uma hora para outra, enquanto voltamos da padaria, com os pães enrolados em papel-manteiga. Hoje, um pesadelo de olhos abertos responde às minhas antigas perguntas: viver em tempos de guerra não nos permite falar de outro assunto.

— E aí, tudo bem?

— Bem… dentro do possível.

— Trabalhando de casa?

— Sim. Um ano no home office. E as crianças, e a mãe?

— Os pequenos tão demais, estudando de casa, pelo computador. Pensa… Minha mãe já vacinou, graças a Deus.

— Que ótima notícia!

— Nem me fala, puta alívio. Quanto pagou nessa máscara?

— Foi a minha mais velha que achou na internet. N95, né? Depois te mando o link, tava em promoção.

— Me manda mesmo, por favor! As minhas, sabe… são aquelas, de pano.

No fundo, sabemos que há pouco a conversar. Por todos os cantos e frestas, um mesmo assunto, um invisível assunto, nos atravessa 24 horas por dia. Como falar em vida social e sentimental ou planos para o futuro sem a certeza de um futuro?

— Mas e a saúde mental, como tá?

— Saúde mental? Que é isso? Nem sei mais…

Crises de ansiedade, pânico e depressão agora parecem ter um só motivo. Preocupações com as contas, o emprego, demissões. Culpa daquilo, que alguns insistem em nem citar o nome. Difícil, pertinho do impossível, não adotar o piloto automático para chegar ao outro lado da travessia.

Não passo um dia sem sentir ódio do governo genocida, sem ver números assustadores, sem prestar atenção às falas de especialistas projetando o próximo mês, a semana seguinte. Colapso, lotação, cuidados, desespero. No ano passado, os primeiros meses da pandemia faziam eu me sentir subindo a montanha-russa. Agora, estou em queda livre e de cabeça para baixo, vendo a alma desgrudar do corpo, com um cinto mequetrefe me prendendo numa cadeira desconfortável.

— Cara, tu precisa desencanar um pouco. Esquece jornal, para de ler notícia por um tempo.

— Como? Tá me pedindo pra confiar no WhatsApp? Tá seguindo o método Morgan Freeman de “basta não falar da covid-19 que ela desaparece”?

Trabalho de casa, saio para fazer compras e correr mascarado. Em alguns dias, parece que o mundo acabou. Em outros, tenho a certeza de que um mundo acabou.

Por que eu escreveria crônicas tratando de outros assuntos? Existe algo relevante além do horror desses tempos? Há outra urgência a ser denunciada, gritada, exposta? Qual texto atual merece ser lido, se não incluir a maior crise sanitária do século, mesmo apenas rondando as entrelinhas, como a peste nos cerca com casos e mortes cada vez mais perto?

Não vou mentir, minha saúde mental está no volume morto e não sairá de lá tão cedo. Mas não posso fingir, desviando os olhos. Meus escassos leitores e minhas raras leitoras vão me entender, eu espero.