Nada mais que um bom leitor

30 de agosto de 2021 0 Por Leandro Marçal

Quem trabalha em escritório conhece a velha tática de disfarçar com uma planilha. É bem simples: depois de terminar suas tarefas do dia (tem gente que faz isso antes, mas não recomendo), mantenha o arquivo do Excel a postos para o caso da chefia aparecer enquanto você assiste a um jogo de futebol, episódio de série ou capítulo de novela durante o expediente. Em caso de emergência, maximize a planilha sem falar nada para ninguém perceber que você estava meio à toa. Truque clássico, conhecido pelos mais experientes.

Pensei nisso outro dia, enquanto lia uma interessante e extensa reportagem sobre música na tela do computador da empresa. Minha supervisora apareceu de repente e perguntou o que era aquilo. “Tô pesquisando pro texto daquele cliente cantor, lembra?”, a desculpa estava na ponta da língua para justificar a hora e meia entretido no interessante perfil de um rapper. Quando a madre superiora se afastou, meu colega de baia olhou para mim dando risada. A desfaçatez e o improviso formam uma grande dupla.

Volta e meia, dou boas lições dos tempos de administrativo para meu aprendiz. Num dia comum, finalizo as tarefas profissionais rapidamente e com eficiência elogiada, não só para evitar retrabalho e demissão, mas também para colocar a leitura em dia durante o tempo livre. Produtividade é isso.

Ganhar a vida escrevendo é só uma desculpa para ler mais. Eu já disse que ter escrito é melhor do que escrever, mas nada supera uma boa leitura. Agrupar as melhores palavras em parágrafos que façam sentido dá trabalho demais, cansa e gasta neurônios. Seja para literatura de reconhecida qualidade ou textos ruins para a internet, mas que ajudam a pagar as contas. Bom mesmo é ler e se eu fosse contador, engenheiro ou bancário, teria menos tempo e pretextos para deslizar os olhos pelos escritos de portais, revistas e livros.

“Imagina se a gente ganhasse dinheiro para ler e dormir”, sonhou o aprendiz outro dia, no horário do almoço. “Se dependesse do meu sono irregular, eu passaria fome. Já pelo vício em leitura, eu entraria na lista de bilionários da Forbes”, respondi enquanto ele comia um pastel na feira a duas quadras da empresa.

Outro dia, me perguntaram quanto paguei “naquele aparelhinho parecido com um tablet”. Acharam caro o valor de um Kindle. Mal sabem a estratégia de mantê-lo ali, perto do teclado, para me dedicar à boa literatura no período da tarde, depois do almoço, quando o tédio e o sono insistem em passear pelos corredores e eu pareço muito concentrado no monitor. Enquanto o “aparelhinho” pode ficar escondido, livros físicos chamam muita atenção e podem ferir as normas corporativas.

Quando me perguntam por que escrevo, não gaguejo mais, nem respondo com o bonito e até mais poético “para não enlouquecer”. Sou apenas um bom leitor, viciado, incurável. Fazer textos, bons e ruins, é só um jeito de ler mais e mais.