Miragens de sexta-feira

23 de agosto de 2019 2 Por Leandro Marçal

Sentia sede, lâminas cortavam a garganta por dentro. Areia e dunas me cercavam. Suava sem parar, as pernas doíam. O instinto e urubus voando em círculos incentivavam minha caminhada. De longe, vi alguém se aproximando. De perto, reconheci um velho amigo. Antes muito próximo, passou a atravessar a rua quando me avistava nas calçadas do centro da cidade, depois do calote naquela dívida considerável.

Ele poderia me salvar no deserto onírico, mas me ignorou e seguiu. Fiquei sozinho, esperando a morte. Acordei assustado. Não acredito em presságios. Nos sonhos, o passado me atormenta e o futuro não bate à porta com avisos prévios. Sem a salvação do despertador, passaria sede até morrer sem morrer, como os pesadelos das piores noites.

Demorei um tempo para sair de casa. Olhava para a chave na fechadura da porta e pensava no deserto. No trabalho, me pediram ânimo. No horário de almoço, contei a história de mais um sonho bizarro. O silêncio imperou: as pessoas respeitam os pesadelos que nos atormentam.

Buscaram explicações. Um antigo devedor surgir à mente enquanto dormia significava muito sobre mim, disseram. Nada de argumentos científicos, freudianos. Eram apelos a superstições, signos, religiões e outras crenças subjetivas. Respeitei a opinião de cada um com a mesma paciência que tiveram no relato de areia e urubus.

Reiteraram o pedido de ânimo. Afinal, era sexta-feira.

Uns iriam beber, outros tentariam simular a reprodução da espécie, havia quem prometesse dedicar o fim de semana à família, ao cinema, ao futebol. Fui proibido de ficar triste. Notei mais sorrisos e menos contestações às ordens da chefia.

Afinal, era sexta-feira.

Na minha mesa, preenchia planilhas enfadonhas sem repetir a alegria dos colegas de baia. Sentia no último dia útil da semana uma miragem como a do devedor no deserto. Quando nos aproximamos da bebedeira noturna, esquecemos a sede causada pelo trabalho. Os urubus podem descansar na folga, mas na semana seguinte nos rondam, ansiando por bicadas no fígado despedaçado como nossas contas bancárias.

No domingo não há oásis, só o calor insuportável. E caminhamos até o reinício da semana. E a repetição, e as reclamações, e as poucas surpresas.

O resto é miragem: a felicidade, as fórmulas vendidas por gurus otimistas, a riqueza repentina, as pirâmides financeiras.

Recusei o happy hour no boteco da esquina e perguntaram com quem dormiria naquela noite. Dei um sorriso amarelo, repetido quando tomei dois comprimidos para dormir até a tarde de sábado, regados a um copo de uísque.