Mil trutas e mil tretas

30 de setembro de 2021 2 Por Leandro Marçal

Em 2007, há uma eternidade, o Rafael me entregou a embalagem de plástico. Dentro dela, uma capa mambembe e um DVD. Pirata, porque se hoje as coisas já estão difíceis, naquela época eu era um adolescente sem dinheiro para nada. Prometi devolver logo, sem demora.

Deveria ser o intervalo ou a saída da escola, eu com pressa para não perder o ônibus até o Senai, ele de uniforme preto e boné para trás. No caminho para o curso de mecânica automobilística, devo ter lido com calma: “1000 trutas, 1000 tretas”. Até aquele dia, só tinha ouvido Racionais bem esporadicamente, uma e outra música, sem me atentar a um álbum por inteiro. Herdei um discman quebrado não lembro de quem, não tinha computador para abastecer o tocador de MP3 e a rádio em casa só tocava rock. Desse empréstimo em diante, minha vida mudou. Minha visão de mundo se transformou.

Aquele dia distante e perdido veio à mente em outro dia menos distante e menos perdido. Em 2015, acho, sugeri ao Leandro e ao Thiago, num falecido boteco de amigos, dar play nesse mesmo DVD. Sentado na cadeira branca e de plástico, à beira da calçada colada na rua de terra, balbuciava boa parte das músicas. Nunca sei as letras até ver os caras cantando e perceber que elas estão aqui, dentro de mim. Podem se sentir esquecidas por dias, até meses. Mas quando são chamadas, as extensas canções percebem que estão distribuídas pelas minhas células, espalhadas pelos meus neurônios, correndo pelo meu sangue.

Meio intelectual e meio de esquerda, muito urbano e muito esforçado, tenho os diplomas da faculdade e de outros cursos enquadrados e pendurados na parede mal pintada do quarto. Não há um certificado provando que ouvir Racionais também faz parte da minha formação como ser humano. Mas no meu relacionamento aberto com o mundo, enxerguei Mano Brown usando chapéu preto e de cara sisuda nas vezes em que a polícia parou meu carro e sequer me revistou, somente as caronas de pele escura.

O DVD, aquele DVD, reapareceu como um bem-vindo fantasma semana passada, durante o expediente, enquanto escutava o podcast Mano a Mano. Nele, Pedro Paulo Soares Pereira entrevista personalidades como Lula e Drauzio Varella com profundidade e humanidade. Com escuta ativa, intervenções pertinentes, disposição para aprender e ensinar. Menos tenso do que aquele Brown do DVD, de quem eu até tinha um medo camuflado na reverência. De lá para cá, sempre paro para ouvi-lo, sempre disposto a traduzir o sentido de “contrariar estatísticas”.

Confesso um pecado: muitas vezes, deixo de ouvir o rap mais recente porque sempre volto àquele DVD. Nem sei se ele foi devolvido. E em tempos de Spotify, espero nunca ser cobrado.