Meu amigo trans

18 de abril de 2022 2 Por Leandro Marçal

Conheço o Guga há anos. Décadas. Parecem séculos. Muito tempo, mesmo. Desde quando morávamos na mesma rua estreita, com paralelepípedos recebendo pisadas de pés descalços e poucos carros passando para atrapalhar jogos de futebol e outras brincadeiras de vizinhos na infância. De lá para cá, mudamos muito. Mudei eu. Mudou o Guga.

Os caminhos da vida nos distanciaram. Sem briga, sem raiva, sem problemas ou desentendimentos. Foi uma mudança de endereço aqui, a conciliação de trabalho com estudos ali, e ficou mais difícil manter o mesmo contato de quando as preocupações eram mais lúdicas que práticas. Não fossem as redes sociais, é possível que perdêssemos o contato para todo o sempre. Há males que vêm para o bem.

Antes de dar a desculpa do excesso de trabalho para sair dos grupos de WhatsApp com amigos de infância, notei que ninguém falava do Guga. Ou melhor, até esboçavam falar do Guga, mas sempre com gracejos soltos, galhofas avulsas, chacotas isoladas. Parecia haver uma censura, logo mudavam de assunto para tratar de outros temas, outras pessoas. E eu reforçava minha impressão de que, para muitas pessoas, certas pessoas são menos pessoas.

Isso já faz anos, mas não décadas, nem séculos. Mas havia um bom tempo, muito tempo mesmo, que certa exclusão do Guga me incomodava profundamente. E por mais que eu tentasse negar a realidade, eu sabia o motivo. Pedi seu número pelo Instagram, perguntei da família, dos rumos da vida.

“Pra você que é das letras, da arte, da escrita, acho que posso falar sem medo. Tô passando por uma transição, entende?”, o Guga me atingiu como uma flecha.

Nas entrelinhas, insegurança. Estava na cara que ele não queria saber se eu entendia, mas se aceitava sua condição, tão rechaçada pelos amigos de infância. Quando pisávamos descalços nos paralelepípedos da rua estreita, o Guga ainda não era o Guga. Ou talvez o Guga já fosse o Guga e apenas não soubesse porque a vizinhança comentava que aquela menina era diferente das outras meninas.

É claro que eu entendia. E acolhia. Não entendia tanto quanto deveria, tecnicamente falando, e fiz perguntas, mais perguntas, essas sobre os tratamentos, sobre a melhor forma de tratamento, sobre quem não merecia meu respeito pela falta de sensibilidade no tratamento. Senti culpa pela distância de tantos anos, mas a vida é essa correria, não tem jeito. Por mais estranho que pareça, nos vemos longe de gente querida para seguir vivendo, mais que sobrevivendo. Muitas vezes, nem percebemos que tomamos lados diferentes de uma bifurcação no meio dessa estrada.

Marcamos de tomar uma cerveja, mas o Guga não pode ingerir álcool por esses tempos. “Sem problema, o importante é a companhia. Colocar o papo em dia, tem anos de assuntos pendentes, né?”, respondi naquele cúmplice tom de intimação amigável.

Mais que uma pessoa trans, o Guga é o Guga, o meu amigo Guga.