Longe das moscas

22 de junho de 2019 0 Por Leandro Marçal

A playlist do Spotify tocou o clássico Mosca na Sopa, de Raul Seixas. Aos presentes no churrasco, comentei o contexto da música, com sua bem-humorada e ácida crítica à censura da ditadura militar. Por falar em autoritarismo, disse um dos presentes, havia um post assustador no Facebook. Era daquele amigo que trabalhava aos fins de semana e não parava de reclamar da situação do país. Perguntaram minha opinião sobre o absurdo, respondi não ter visto. Correria do trabalho, menos redes sociais, desculpa perfeita.

A curiosidade mórbida me fez puxar o celular e buscar tal postagem. Eram imagens explícitas de corpos abertos ao meio, com sangue jorrando, acompanhadas de um texto indicando os “vagabundos” como merecedores do trágico fim. Parte do grupo protagonizou acaloradas discussões nos comentários daquela aberração durante a semana. Eu era o último a saber.

Gaguejei e confessei meu ato pela saúde mental. De um tempo para cá, silenciei postagens de alguns perfis na minha linha do tempo. Até mesmo de amigos próximos. Deles, nada vejo. Não preciso, assim, justificar uma desconfortável exclusão e não me indisponho com fãs de ditadores, violência e outras barbaridades. Não sugam minha tranquilidade enquanto gasto tempo.

Conheço o amigo da postagem estarrecedora há algumas décadas. A polarização extrema o levou a romper vínculos antigos. Dizem que lança indiretas para mim em posts enlouquecidos, aguardando uma discussão comigo. Não sei, não vejo nada. Outro amigo, viciado em cinema, lembrou o filme Entre Abelhas, protagonizado por Fábio Porchat. Nele, um homem começa a não enxergar mais as pessoas à sua volta. Aos poucos, como em uma doença silenciosa.

Passo por um processo semelhante. Ex-namoradas, familiares chatos, extremistas enlouquecidos, golpistas, hipócritas, devedores contumazes, fanáticos religiosos, vizinhos inconvenientes, vendedores de ilusão, entusiastas de pirâmides financeiras. Todos ocultos na minha linha do tempo. Não discuto em comentários, tampouco me sinto atingido por barbaridades insanas. Não excluo ninguém. Na vida real, é mais fácil ignorar que apagar de vez uma pessoa de nossas vidas. Faço o mesmo no ambiente virtual.

Nessa sopa, evito moscas pousando depois de navegar no chorume do extremismo, do ódio, de um mundo paralelo. Basta um primeiro sinal de zumbido e deixo de segui-las. Sem estresse. Posso cumprimentá-las em encontros casuais na rua sem prévios julgamentos, evitando atravessar a rua para não dar a mão a quem acredita em hierarquias.

Depois de voltar com três ou quatro latinhas de cerveja na mão, o viciado em cinema perguntou se eu não estaria, assim, criando uma bolha apenas com pessoas que concordam comigo, distorcendo minha visão da realidade.

Respondi que uso as redes sociais apenas para distração, como pedalar na ciclovia da praia em um domingo de sol. Além disso, preservo o pouco que me restou da saúde mental, não quero opinar ou ver a opinião de todos sobre tudo.

Brindamos, tomamos outra cerveja e olhamos nossos celulares. Nas minhas notificações, vi meu nome marcado pelo defensor de arbitrariedades. Era um vídeo de um cachorro muito parecido com o meu fazendo malabarismo. Respirei aliviado, ri com emojis e dei um “Haha”. Puxei meu prato, abanei com as mãos para evitar moscas e comi um pedaço de carne fria.