Ciúme de barbeiro*

17 de junho de 2021 0 Por Leandro Marçal

*Lá por 2017, eu engatinhava como cronista. Não que hoje eu ande muito, mas devo ter aprendido um pouco. Semana passada, na volta de uma corrida no começo da noite, resgatei essa crônica, publicada originalmente há quase quatro anos. Dei uma leve editada no textinho meia boca para não passar mais vergonha, mas não mudei a essência. Menos é mais, acreditem.

Fazia um bom tempo que eu não ia cortar o cabelo no salão. Em toda minha vida, só fui ao barbeiro mesmo, essa entidade. Nunca fui a cabeleireiros, essa coisa mais profissional e menos cultural. Coisa de quem cultiva a vaidade, não é para mim. Estou sempre caminhando entre a carequice completa e a calvície tímida.

Os “barber shop” – com nossa estranha mania de colocar nomes em inglês para tudo – cortando cabelo em um ambiente gourmet que vende de uísques a tatuagens são algo ainda bem estranho para mim, como subcelebridades de redes sociais ou pobres de direita. 

Calvo desde os 20 anos, meu salão tem sido o banheiro de casa com meu estoque de lâminas de barbear. Quebrei a rotina semana passada. Achei nostálgico me recordar desse ambiente lúdico do psicólogo da periferia.

Os barbeiros e os taxistas guardam segredos que derrubariam a República. Eles ouvem confissões tão íntimas quanto despretensiosas dos tantos que passam por suas cadeiras com um grande pano nos protegendo de nossos próprios cabelos.

Dos 45 minutos sentado ali, uns 20 são dedicados aos papos, cumprimentos aos conhecidos passando na rua e teorias mirabolantes que resolveriam os problemas da humanidade, se as autoridades (in)competentes dessem ouvidos aos aperfeiçoadores de madeixas. Eles, sim, sabem toda a verdade do mundo.

E cobram de nós uma lealdade meio estranha. Experimente cortar sua juba com o outro profissional do salão ou no concorrente ao lado – pois não há barbeiro solitário, eles costumam se acomodar na mesma calçada, como um shopping capilar no centro da cidade. Pode ter certeza de que haverá ciúmes maiores do que o de relacionamentos abusivos.

São olhares tortos e desconfiados, seguidos de cumprimentos mais apertados do que o normal depois de uma traição como essa. Dá até medo de voltar a cortar o cabelo com quem se sentiu traído. Imagine o sentimento de posse na cabeça de quem tem uma navalha na mão (no meu caso).

Tenho medo de estar num filme de terror, sendo ameaçado com uma navalha na minha jugular, com sangue saindo do meu pescoço enquanto ouço os gritos de “por que você não cortou o cabelo aquele dia comigo? Nunca mais faça isso! Espere na próxima vez!”.

Quando resolvo ir ao salão por falta de lâminas de barbear no meu banheiro, fico calado, estático, em um ambiente desconhecido.

Evito puxar assuntos tensos como religião, política ou futebol. Ainda mais agora, que passo a navalha para deixar a careca mais reluzente. Se ele lembrar que faz um bom tempo que não venho aqui, pode desconfiar que atravessei a rua da última vez, corro algum risco e não dá tempo de ligar para ninguém. Quem vai querer ser minha testemunha nessa neurose sem sentido?

Deve ser por essa paranoia que o próximo cliente torce para ele terminar esse corte logo e só reclame mentalmente da demora, com receio do que possa acontecer com seu visual nas mãos de quem sente ciúmes de cultivar a vaidade na cabeça alheia.