Carta à minha sobrinha
Helena Maria,
Quando você tiver idade para ler esta carta, é possível que alguém precise explicar o que é uma carta. Mesmo quando comecei a escrevê-la, quase ninguém mais se comunicava por cartas. No passado, cartas já eram coisas do passado. Ficou um nome bonito e endereçado a alguém, apenas. As cartas foram populares, mas os tempos digitais forçaram sua aposentadoria. É possível que alguém também precise explicar o que é aposentadoria. Se eu ainda estiver vivo, pode me cobrar, eu explico.
Você veio ao mundo num tempo muito esquisito, no ano 1 da pandemia de covid-19. Ver milhões morrendo pelo mundo, ver milhares morrendo todos os dias, ver tanta gente negando a realidade. Era assustador, as pessoas de bom senso se espantavam com a degradação do nosso país. É possível que alguém precise explicar o que é um país. Tudo andava mais estranho que o normal, por isso quando sua mãe anunciou a gravidez, num sábado de jogo ruim na tevê, deu receio. Até porque sou hipocondríaco. Vão explicar o que é isso, não se preocupe.
Confesso que não entendi bem porque sua mãe e seu pai escolheram um nome composto, mas nunca foi meu forte entender sua mãe. Seus avós também tinham alguma dificuldade nisso. Muitas outras pessoas também. Não importa. Importa saber que o mundo assusta, a vida assusta, os medos assustam. Eles são tão grandes que não dá para controlá-los. Ainda assim, você vai conhecer um montão de gente que jura ter a capacidade de controlar tudo: o mundo, a vida, as emoções, as paixões. Se possível, desvie dessa gente. E sempre que possível, evite ser esse tipo de gente.
Sou engolido por um lado excessivamente racional quase o tempo todo. Me ouça, mas não me copie. Nem no excesso de racionalidade, nem no pessimismo exagerado. Desculpe a distração, essa carta não é sobre mim, é menos sobre você e mais para você. No tempo do seu nascimento, Helena, Maria, Helena Maria, a burrice e a estupidez viviam grande fase. As pessoas se orgulhavam da própria ignorância e insensatez. Infelizmente, não fomos competentes ao evitar esse movimento e o mundo aí, no futuro, não deve ser estar muito melhor.
Não quero te assustar, não, mas é bom ter consciência desde cedo. De que o ano em que você nasceu foi o pior da vida de muita gente. Quando ouvir isso, não leve a mal, não é nada contra você.
Ainda havia muitas pessoas dispostas a dificultar a vida de mulheres. Também ainda existia muita gente com ânsia e atrapalhar os dias de quem pensa diferente e tem outra cor de pele, religião, orientação sexual e estava fora de supostos padrões. Espero que quando você estiver lendo, tudo isso melhore, mas não tenho muita certeza.
Eu tenho certeza, mesmo, é de que quando você estiver lendo esta carta, a temperatura estará mais alta. O planeta estará ainda mais quente, ele vem esquentando dia após dia. Aí, no futuro, sofreremos um pouco mais os efeitos de um aquecimento falado há algum tempo, mas que uns e outros insistem em não acreditar. Caprichos humanos. Humanos demais, humanos de menos.
É tanta coisa, não cabe tudo num texto. Não cabe tudo num mundo. O seu mundo, Helena Maria, é só seu. Ninguém nunca haverá de conhecê-lo na totalidade. Você ainda vai ter muitas histórias para contar. E ouvir, e viver, e criar, e recriar. E mais, muito mais.
Se eu ainda estiver por aí, no futuro, prometo seguir dando uma força na luta contra a estupidez e a burrice dessa gente cretina. Lamento informar, mas fatalmente você vai trombar com elas por aqui e por ali. Mas sempre que possível, vai ter alguém para explicar os atalhos e mostrar os caminhos para fazer o melhor, mesmo que o mundo pareça pior.
Seja bem-vinda, Helena Maria.
As Helenas Marias, as Valentinas e as Teodoras, farão deste mundo um lugar melhor. Só delas dizerem não, já é soco na cretinice.
[…] lágrimas ou um “como escreve bem, né?” de quem chega à última linha. Não vou mentir, já caí nesse clichê. Nem sei se faz sentido escrever diretamente para quem acabou de nascer e para quem ainda nem se […]
Lindo Texto, Leandro.
Amo cartas e, nesse caso, é uma sensação gostosa de ler. Acho que poderia haver mais cartas para ela. Eu vejo isso virando uma coletânea de textos. Abraço, meu querido.
Bem vinda Helena Maria! Mais uma vez me emocionei com seu texto , tio Leandro! Parabéns pela chegada da Heleninha à essa família, a Felicidade vem junto com ela!
O mundo já está melhor. Agora temos uma Helena Maria para consertar os destinos. Abraço Tiozão.
Que texto maravilhoso! Gosto muito da filosofia que ele traz.
“Humanos demais, humanos de menos”. Mais um grande texto, meu caro.