Carristas

6 de março de 2023 75 Por Leandro Marçal

O carrismo é uma religião contemporânea e retrógrada. Assim, simultaneamente. Pouca gente admite ser fiel a essa crença inabalável, mas seus dogmas são seguidos com fanatismo. Muitas vezes, também com hostilidade.

Para carristas, é impossível ter satisfação pessoal sem a posse de uma caixa metálica sobre quatro rodas, deslocando-se para lá e para cá, de um canto ao outro, chegando mais cedo uns dias, perdendo tempo no trânsito entupido ou procurando uma vaga para estacionar em outros. Nessa fé, é permitido depositar inseguranças e frustrações freudianas no santo de estimação. Quanto maior, melhor. Você conhece beatos e beatas do carrismo, capazes de sentir dó e compaixão por quem pede carona, prefere ir a pé ou deixa a bicicleta amarrada a um poste.

Essa gente religiosa vomita críticas justas ao transporte coletivo: sempre entupido, ficamos de pé, demora para chegar, não há respeito a quem precisa cumprir horário no trabalho. Impossível discordar. Mas em suas orações antes de virar a chave, pedem a Deus para que ônibus e trens e VLTs sigam com problemas crônicos. Do contrário, não haverá desculpas para torrar seu meio salário-mínimo na parcela mensal do altar móvel. Como assim, cometer o pecado mortal de dividir espaço com aquela outra gente, que ainda não chegou ao céu da posse de um transporte individual?

Ninguém tem cara de carrista, só uns comportamentos típicos. À noite, quando vão se divertir, é claro que saem dirigindo – carristas falam “pilotando”, acredite – a caranga. Tenho meu carro pra isso, dizem. E não ficam sem beber, mesmo sob o risco de multas e acidentes na volta para casa. Aliás, a culpa pelas milhares de mortes anuais no trânsito é sempre dos outros: dos motoqueiros folgados, dos caminhoneiros espaçosos, dos ciclistas suicidas e dos pedestres apressados demais para chegar à outra calçada.

Conheço carristas que não se incomodam por trabalhar muito mais que o necessário. Sustentar sua igreja itinerante vale o esforço. Carristas se estressam todos os dias com o trânsito, que curiosamente odeiam. Xingam a concorrência por espaço, reclamam do excesso de semáforos e dos absurdos radares, essa invenção civilizatória criada pela indústria da multa. Dar a vez para seres humanos na faixa de segurança é coisa de hereges. Encontram sentido na insanidade de dirigir até a academia para correr meia hora na esteira. São capazes de discursar por horas para justificar uma suposta necessidade de ter seu veículo. Em sua crença, não-carristas pagam uma punição divina.

Para o carrismo, uma cidade que priorize pessoas não é aceitável. Calçadas não têm utilidade, ao contrário das vagas gratuitas para estacionar nas regiões movimentadas, com veículos manobrando enquanto soam buzinas nervosas.

Se você tem carro, nem sempre é carrista. Mas se for carrista, tem devoção ao carro, faz questão de ter um carro, de pertencer ao carro, de fazer do carro uma extensão do corpo, de idolatrar o carro, de ver no carro o símbolo de sucesso e ferramenta de superioridade. Se você é carrista, quer ser um carro, se acha um carro.

Carristas me enxergam como um doente. Porque chamo o Uber, porque tenho cartão-transporte, porque sei a rota dos ônibus circulares. Me olham como um paciente terminal.

O bolso pode rasgar, o metrô pode ser mais rápido, os exames podem alertar sobre a necessidade de se movimentar mais. Não importa. Que o deus-carro esteja conosco, o deus-carro está no meio de nós.