Cabeça de bode

13 de outubro de 2020 4 Por Leandro Marçal

A molecada resolveu passar na casa do Giba, não lembro o motivo. Tocamos a campainha. O portão era de alumínio, daqueles com lanças em cima. Não dava para ver nada lá dentro sem se pendurar. Um de nós, não lembro quem, cumpriu essa missão, olhou lá dentro e tomou um susto.

­— Ele tem uma cabeça de bode!

Os outros moleques ficaram me olhando e rindo. Havia uma lenda, nunca comprovada, de que o tamanho da minha cabeça era consideravelmente maior que a média mundial.

— Não tô zoando. Tem uma cabeça de bode pendurada ali, logo na entrada.

A curiosidade juvenil fez cada um de nós ver com os próprios olhos. Realmente, o Giba tinha uma cabeça de bode pendurada na parede da sala, do lado de fora. Dava para ver do quintal. Algumas pessoas penduravam gaiolas com pássaros contrabandeados nas paredes. A família do Giba preferia expor uma cabeça de bode. Ninguém sabia o motivo.

Fomos embora. Um dos moleques, o de família excessivamente religiosa, ficou com medo. Uma cabeça de bode não podia ser coisa boa. Ele achou melhor não chamar o Giba para mais nada. Nem ir à praia, nem jogar futebol, muito menos videogame em casa. Tomaria uma bronca da mãe se ela soubesse que a visita tinha uma cabeça de bode pendurada na parede.

Na semana seguinte, o Giba percebeu que uns e outros foram se afastando. Pareciam ter medo, mal o encaravam. Discretamente, me perguntou o motivo. O Giba riu e perguntou se achavam que ele fazia rituais satânicos. Eu balancei a cabeça.

— Que engraçado. Tem nada disso, não. Minha mãe só pendurou aquela cabeça de bode porque acha bonita, quis decorar a entrada. Nada demais.

— Mas você tem religião?

— Nenhuma.

— Nenhuma?

— Nenhuma. Não acredito em nada. Mas rezo todos os dias antes de dormir. Precaução, né? Vai que eu tô errado…

O Giba tinha essas tiradas bem-humoradas e discretas. Outro dia, nos encontramos na rua, por acaso. Está muito bem, abriu uma loja do outro lado da cidade. De roupas ou calçados, não lembro. Perguntei se o nome do comércio era “cabeça de bode”, ele riu discretamente. Me convidou para ir lá, fazer uma visita. Prometi que vou, claro que vou.

O moleque de família excessivamente religiosa não é mais tão moleque, mas segue excessivamente religioso. No seu perfil do Facebook, abundam – ele achava essa palavra pornográfica, eu lembro – postagens sobre profecias. Tudo isso já estava escrito. Não entendi bem o que é isso, nem onde estava escrito. Quando comentei no grupo sobre o Giba, disseram que o moleque excessivamente religioso atribui o sucesso profissional do amigo de infância à cabeça de bode e a rituais satânicos.

Eu sei que não. Mas não gosto de comer buchada. O cheiro é forte, a comida é pesada. Não é para mim. Toda vez que esse prato é servido, agradeço e penso no Giba. Numa terra de pensamentos estranhos, não surpreende que ele tenha perdido amizades por um enfeite na entrada da sala. Uma pena, uma pena.