Bom dia, boa tarde e boa noite

16 de agosto de 2021 2 Por Leandro Marçal

Cultura corporativa é uma excelente expressão usada para mascarar regras de conduta esdrúxulas no ambiente profissional: deixe sua personalidade escondida na mochila até bater o cartão para ir embora, finja sorrisos, concorde com cretinices, ignore seus princípios e bata metas. Siga o manual da firma, faz parte da nossa cultura corporativa.

Na semana de integração, recebemos uma cartilha com todas as diretrizes internas. Não acredito que alguém seja tão idiota a ponto de ler esse monte de bobagem, por mim bastava ter bom senso. Mas nos primeiros dias, recebemos instruções em tom de voz manso, talvez para não intimidar os mais otários. Uma delas indicava a quase obrigação de ser cordial para manter o ambiente mais saudável. É o que dizem. Resumindo, nessa peça de teatro profissional, fingimos educação para evitar a demissão.

Isso me irrita às vezes. Todos os dias. De hora em hora.

Meu primeiro “bom dia” corporativo é o mais sincero, senão o único. É quando cruzo a catraca depois de passar o cartão. Dou “oi” com sinal de tchau para as recepcionistas e ergo o polegar para o segurança. Volta e meia, ele puxa um assunto: futebol. Outras vezes, deixo colegas do administrativo constrangidos quando faço questão de cumprimentar a dita ralé na frente de todos. Saudações na portaria não devem constar no manual de conduta.

 Subo até o décimo andar, dou uma pigarreada e cumpro a maratona de “bom dia”. Falo em voz alta, para não soar esquecido ou mal-educado. Meu chefe precisa ouvir. Há coisa de dois anos, fui chamado à sua sala. Me perguntou se eu estava bem. O cretino estranhou a falta de cumprimento durante a manhã de uma sexta-feira de ressaca. É um idiota com sorte.

Quando saio da minha baia e preciso me encaminhar até a sala da impressora, cruzo o andar e passo por pelo menos 20 pessoas. As duas dezenas de infelizes já tiveram o desprazer de ouvir o meu falso “bom dia” quando cheguei, mas ao topar com cada um deles, me vejo obrigado a balançar o pescoço em tom de aprovação, feito um caipira levantando o chapéu, e esboçar um sorriso mequetrefe, talvez erguendo as sobrancelhas. Uns respondem “opa!” porque não aguentam mais esse inferno, outros rebatem com o milésimo “bom dia” automático porque levam a sério o manual de conduta.

Na cultura corporativa da empresa, somente os chefes podem dar chiliques para esculachar funcionários. Ou melhor: colaboradores. Já os meros mortais são cobrados até mesmo pela ausência do “boa tarde” na volta do almoço. E o suplício se repete: a cada encontro desajeitado nos corredores do escritório, a tortura do “boa tarde” se repete até o bate-papo na copa depois das cinco, quando enrolamos para o tempo passar e voltarmos, cada um para suas casas, o mais rapidamente possível.

Só sou feliz no “boa noite” ao fim do expediente. O pessoal me responde “bom descanso” e me entristeço levemente ao pensar nas muitas horas desperdiçadas convivendo com gente incapaz de puxar um assunto que não sejam os relatórios, as reuniões enfadonhas e as metas impossíveis.

Para piorar, durante a pandemia criaram um grupo virtual para resolver as coisas do trabalho. O excesso de “bom dia” se multiplicou à enésima potência: todos precisavam provar que estavam na labuta e não descansando depois de bater o ponto num aplicativo inútil criado pelos imbecis da TI.

“Bom dia”, “bom dia”, “bom dia”. “Bom almoço”, “bom almoço”, “bom almoço”. “Boa tarde”, “boa tarde”, “boa tarde”. “Boa noite”, “bom descanso”, “boa noite”. Puta que pariu. Eu preferia balançar o pescoço em tom de aprovação, me perturbava menos o juízo.

Esse inferno era um inferno antes da pandemia. Ficou mais inferno no home office. Continua um inferno na volta ao presencial. Vou ali bater meu ponto. Espero que o segurança não me veja. Meu time perdeu ontem.