27/10/2002

11 de março de 2021 0 Por Leandro Marçal

De lá para cá, muitas coisas mudaram e desmudaram. Morávamos num lugar simples. Nossa casa era a última, a dos fundos, num terreno com outras duas. Minto ao falar “nossa”: era alugada, pertencia a parentes distantes de sobrenome e próximos de convívio, que muito ajudaram em momentos difíceis.

Quando chovia, e nem precisava chover muito, a rua alagava. Entrava água no quintal, e mais água porque tinha um canal pouco depois da esquina. Em lembranças infantis, eu usava um pote de margarina para encher o balde com a água da sala após ressacas de temporais. Não era brincadeira de criança. Também ouvi, com certa frequência, uma história: meu pai me carregava pelos ombros, pisando na água, sem deixar que eu me molhasse. Tudo para eu não faltar na escola.

Era comum eu passar os fins de semana na casa desses parentes distantes. Lá, as enchentes não castigavam, tinha tevê por assinatura e sorvete. Sempre tinha sorvete no congelador. Na nossa casa, que era deles, não sobrava dinheiro para sorvete. Não sobrava dinheiro.

Eu chegava na manhã de sábado e voltava domingo à noite. Me buscavam e me devolviam de carro. Sempre um carro do ano. Conversavam com meu pai sobre amenidades, reformas e serviços na casa desses parentes como renda extra para nós.

Eles sempre tiveram boas condições. Carro do ano, reforma todo ano. Pautavam os aniversários da família e era difícil alguém discordar. Eram bem sucedidos demais para opinarem errado.

Mas naquele domingo, o clima era estranho. Fui à casa deles como em outros finais de semana. Eu assistia muita tevê naquela época, mas não me deixaram escolher o canal. Ficou o tempo todo no noticiário. O ar de apreensão era tão grande que até esqueceram de me levar para casa. Um clima de pré-luto, como se o familiar estivesse às vésperas de partir.

Ouvi o barulho do interfone, eles tinham dinheiro para comprar um interfone, e ouvi a voz do meu pai. Ele saiu da nossa casa, que era dos parentes, para me buscar de bicicleta. Fato raro para aqueles domingos. Enquanto me despedia, começava o Fantástico. De relance, ouvi algo sobre um dia histórico, com muita gente na rua.

Meus parentes sequer fecharam o portão, pareciam hipnotizados na frente do televisor grande e pesado, muito antes desses tempos de tela plana (eu disse TELA plana).

Meu pai sorria, e ele dificilmente sorri. Fazia questão de ver a reação dos parentes com a nossa vitória, me disse. Em casa, a casa que não era nossa, assistimos ao Fantástico, mas não entendi bem.

O tempo passou, o tempo sempre passa. Nos afastamos desses parentes. Saímos daquela casa, a que nunca foi nossa, de um jeito tumultuado. Consegui meu primeiro emprego, e depois de meses estudando entrei na faculdade sem pagar um centavo. Bolsista integral, o primeiro da família. Da geração.

Para a mãe desses parentes, já bem idosa, era inaceitável. Faculdade não era lugar para pobre, ela dizia (juro!). Mudamos de casa outras vezes. Passei num concurso. A vida mudou. Melhorou. Depois piorou. Conheci gente de todos os cantos. Virei sócio de amigos. Fali. Me endividei. Me indignei. Me reconstruí.

Já disse várias que minha vida mudou desde que pisei na faculdade. Meia verdade: começou a mudar naquele dia. 27 de outubro de 2002. Voltamos de bicicleta, meu pai ria, ria. Demorei alguns anos para entender.

Ontem, pedi comida de um restaurante bom aqui das redondezas. Contrafilé, para lembrar os tempos em que era rotina comer carne. Meus parentes faziam muitos churrascos. Aqueles, daquela casa, daquele tempo, naquelas condições.

Pensei neles. Enquanto minha mãe cortava a carne, a tevê ligada, cantarolou uma música. “Cantei muito em 89, até hoje sei a letra de cor”, me disse.

Daqui até o ano que vem, muita coisa ainda há de mudar depois das últimas desmudanças, e a esperança há de vencer o medo outra vez.