Um homem quebrado

4 de novembro de 2020 2 Por Leandro Marçal

Me sinto um homem quebrado. Quando pequeno, nunca fui de pular muros ou subir em árvores. Até por isso, não penso em ossos fraturados, com um gesso rabiscado, cheio de assinaturas e desenhos bizarros. Me sinto quebrado por dentro.

Não aconteceu nada demais. Nos últimos meses, meus problemas psicológicos parecem até controlados, como o cachorro preso à coleira, dormindo na sombra, depois de comer um pote de ração. As coisas têm caminhado bem por aqui. De verdade.

Mas ontem, quando voltava do trabalho, vi pessoas andando para lá e para cá nas calçadas, motoqueiros buzinando, carros se entupindo na frente dos semáforos, muros pichados, casas abandonadas, algumas invadidas, portas de comércios fechando ao fim do expediente, animais largados nos meios-fios, faixas de pedestres meio apagadas por falta de manutenção do poder público, moças bonitas entrando na academia, homens bravos com o mundo girando.

E uma nuvem negra pousou sobre minha cabeça. De uma hora para outra, velhos fantasmas do passado tocaram a campainha do meu bem-estar mental. Volta e meia, eles me perseguem. Vez por outra, sonho com essas assombrações, surgidas na forma de pessoas que ficaram para trás na minha linha do tempo. Por decepções, golpes e brigas, não seguiram comigo no passar dos dias, semanas, meses e anos. E os fantasmas fazem questão de me soprar no ouvido: sou um homem quebrado, ferido, cicatrizando. Nunca cicatrizado, a cura é um permanente gerúndio.

Me esforço para abrir sorrisos, abuso da ironia feito um diabético teimoso com um chocolate na mão, finjo sisudez como mecanismo de defesa. Não quero me quebrar de novo, mas hei de me quebrar de novo. É a vida. Pode ser em mais ou menos pedaços, mas o estalo será ouvido até o fim da vida. Tenho alguma capacidade de calcificação dos ossos, eu sei. Mas desisti de controlar o processo, é inútil. Ando juntando os cacos, sem vergonha de me passar por carrinheiro.

Volta e meia, encontro um pedacinho de louça despedaçada, pego a vassoura e posiciono bem a pá de lixo para não sobrar nada e vou adiante. Nessas horas, penso nos dependentes químicos e nas pessoas com doenças crônicas. Longe de buscar uma cura definitiva, só querem controlar os monstros internos. Ou os cães na coleira, ou os fantasmas, como queiram.

Fico inseguro e penso: sou um homem quebrado. Erro e lembro: sou um homem quebrado. Paro, respiro e me convenço: sou um homem quebrado, é normal ser um homem quebrado, não sou pior porque sou um homem quebrado, é ótimo me reconhecer como um homem quebrado, preciso parar de me cobrar por ser um homem quebrado.

Certas coisas não têm conserto, mesmo. E tudo bem. Para outras, é possível fazer um remendo aqui e um curativo ali. Passo a mão pelas cicatrizes, reflito sobre histórias com fantasmas, lambo as feridas abertas e cada vez menos doloridas. E sigo, como deve ser.