Tinta branca
Quando a bolha da imprensa esportiva no Twitter repercute uma daquelas reportagens que vai além dos resultados da rodada e das contratações do mês e das péssimas arbitragens do campeonato, uso uma lupa para ler os comentários. Se foi escrita pelo Alexandre Alliatti, do Grupo Globo, me organizo e reservo uns bons minutos para a leitura, certamente uma boa leitura.
Na busca incansável e incoerente por opinar sobre tudo e sobre todos, muitos colegas jornalistas esquecem o poder de um bom texto. Mas o Alliatti é hábil na palavra escrita. Li suas mais ou menos recentes reportagens de obituário do Estádio Olímpico e perfil do Luiz Felipe Scolari com a certeza de que meus olhos se moveriam sobre jornalismo literário.
Em tempos mais e mais digitais, há quem subestime a importância de um bom texto, há quem ignore a importância de um grande texto. Bobagem, pura bobagem. E o Alliatti, esse operário do texto, mostra em Tinta branca, seu livro de estreia pela Editora Patuá, que ser bom contador de histórias vai muito além de juntar palavras que façam sentido.
A trama se passa em Nova Colombo, pequena cidade fictícia-porém-muito-realista no interior do Rio Grande do Sul. Narrada por Zago, professor de História de um colégio particular, tem como ponto de partida a covarde agressão contra um imigrante haitiano na praça central. “A cidade amarrou o haitiano ao poste em um domingo de festa.”, perdemos a respiração ao tomar esse soco na boca do estômago logo na abertura. Esquecimentos, apagamentos e a nem sempre vã tentativa de buscar verdades inconvenientes estão nos dez capítulos entrelaçados entre esse episódio traumatizante, a crescente relação de Zago com a também professora Ana, e a tentativa do protagonista em ajudar o forasteiro Giovanni a entender suas origens naquele lugar provinciano.
Minto, tem mais: Tinta branca expõe os flagelos do racismo, da escravidão, da xenofobia, da barbárie jogada para baixo dos tapetes da sociedade, do punitivismo barato abraçado à justiça com as próprias mãos, da ancestralidade para a qual insistimos em fechar os olhos, da violência gratuita alimentada dia e noite por uma masculinidade retrógrada, mas tão valorizada no interior de muitos interiores.
Como colocar tudo isso em uma obra de ficção sem ser panfletário, sem enjoar o leitor com diálogos expositivos, sem fazer do livro uma aula do Telecurso 2000 artificializada? Só os bons escritores sabem, pergunte ao Alliatti. Se preferir, pergunte também ao Daniel Galera, cujo estilo se assemelha no ritmo e nas descrições bem detalhadas e fluidas, desenhando cada cena e ambiente dentro das nossas cabeças.
Claro que o autor traria o futebol, de um jeito ou de outro. Se você não sabe nem o formato de uma bola, não se preocupe. No conto Gamarra, publicado na sexta edição da revista Revera – Escritos de criação literária do Instituto Vera Cruz, já estava claro como o futebol pode ser e deve ser campo vasto para a criação ficcional, seja como personagem ou cenário ou ponto de partida ou pano de fundo, ainda que os literatos torçam o nariz para a bola e os boleiros torçam o nariz para a literatura.
Curitibano de nascimento e, se eu não estiver errado, gaúcho de criação e de alma, Alliatti descreve bem demais uma cidade interiorana e conservadora, dessas que essa gente conectada e moderninha do Twitter desconhece profundamente em suas miudezas.
Minhas primeiras conversas com o autor foram para falar de um dos nossos escritores favoritos, o David Foster Wallace. E nas nossas mais recentes conversas, perguntei se o Alliatti já se identificava como escritor quando lhe perguntavam a profissão, quando preenchia fichas, quando se apresentava publicamente. Ele ficou meio sem resposta, eu confessei que ainda gaguejo nesses momentos, mas depois de algum tempo cheguei a uma conclusão.
Somos operários do texto, Alliatti. Você no jornalismo, eu de vez em quando no jornalismo, você na televisão, eu nos formatos que pagam as minhas contas, você daí e eu daqui na literatura. Especialmente mas não exclusivamente na literatura: somos operários do texto.
[…] Ontem, minha mãe conversava comigo sobre consciência de classe. Acho que eu sempre tive e até hoje lembro bem o dia da vitória do Lula pela primeira vez. Éramos um país muito mais civilizado, democrático, promissor. Mas a esperança vai vencer o medo outra vez. Esse é o país que eu acredito, muito mais do que esse que nos tornamos, bem descrito na crônica sobre o livro Tinta branca. […]