Tempos de jacas maduras

28 de janeiro de 2019 2 Por Leandro Marçal

Minha mãe é fissurada em jacas. Não é mera questão de gosto, mas de amor incondicional. Se você bater à porta para falar mal da fruta com corpo de porco-espinho, será persona non grata.

Eu não suporto. As jacas, não minha mãe. O cheiro, a aparência, o grude nas mãos. O gosto é estranho, não sei explicar. Sou enjoado com comida. Meu pai e minhas irmãs até as toleram. Não morreriam de fome se fosse o último alimento do mundo. Longe de amor ou ódio.

Estamos na temporada das jacas maduras e amarelinhas. Como as de um pé chamando atenção na casa de portão de madeira da rua de trás. Depois de muita insistência, descobri, a mando da família, que elas não estão à venda, tampouco são dadas.

No meu quintal, não há espaço para uma árvore assim. Na cozinha, há (muito) espaço para as jacas. Elas são cortadas em pedaços pequenos, guardados em potes transparentes de tampas azuis na geladeira. Volta e meia, reclamo do cheiro tomando conta dos cantos.  

Nos tempos de jacas maduras, amigos da família guardam o fruto para presentear minha mãe. Foi por isso que meu pai pedalou durante cinco quilômetros até a cidade vizinha. Estava bem amarelinha, disse o ex-colega de serviço. Há uma ciclovia na rua de trás, a do portão de madeira. A bicicleta pesada, com um suporte atrás do banco para transportar pessoas ou mercadorias já trouxe muita coisa para cá.

Na volta, uma moça pedalava enquanto digitava mensagens pelo celular, indo em direção contrária ao meu pai. O acidente poderia ser trágico para os ossos, as bicicletas e a fruta. Com um grito, a ciclista desavisada percebeu o risco, perdeu o equilíbrio, com o pé evitou a queda no asfalto quente. E xingou até a quinta geração do meu pai. Ele pedalou mais um pouco, olhou para trás e viu a moça conversando com dois policiais em uma viatura parada ali perto.  

 A duas quadras de casa, meu pai foi parado por outra viatura. Os policiais pediram esclarecimentos quanto ao ocorrido umas centenas de metros antes. Ele explicou o ocorrido, lamentou a falta de educação da moça e mostrou os documentos para provar que não deve nada a ninguém, fora uma e outra instituição financeira.

Antes de retornar às pedaladas de volta para casa, o outro oficial, antes calado, queria saber a origem da jaca. Os motivos de pendurá-la em uma bicicleta, para onde iria levá-la e a insinuação de que ela deveria ser acomodada no banco de trás da viatura indignaram um trabalhador prestes a se aposentar.

Educadamente, meu pai indicou não haver motivos para perder a jaca depois de tanto esforço, tanto mais por quem preza pela lei. Aparentemente, carregar frutas ainda não é crime, roubá-las sim. Notou a cara irritada dos homens de farda e voltou para casa, sem medo de um tiro acidental.

Seria mais arriscado chegar ao portão de casa sem a jaca. E foi complicado engolir a história surreal de ruas reais. Fui colocar o lixo lá fora e a casca com espinhos fez subir o cheiro característico.  

São tempos de jacas maduras. Estranhos tempos de jacas maduras.