Que pena, professor

16 de julho de 2021 7 Por Leandro Marçal

*Chorei com todas as postagens, reportagens e lamentos pela morte do queridíssimo Marcus Vinicius Batista. Isso aqui não é um obituário, mas a celebração de uma amizade memorável, de um ser humano tão… ser humano. De cronista para cronista.

Há um tipo estranho de eternidade nos distanciando do mundo que existia até o fim de 2019. No ano passado, caímos num abismo interminável, sem saber o tamanho da queda, batendo de galho em galho em pancadas cada vez mais pesadas, torcendo para batermos a cabeça e desmaiarmos até o fim desse pesadelo pandêmico. Era outro mundo, aquele pré-2020: um mundo sem máscaras, com gente ao redor, com a morte mais envergonhada em dar as caras todos os dias. Era impensável vivermos uma sequência de lutos intermináveis e coletivos, nos rondando por todos os cantos, enquanto torcemos pela chegada do dia da vacina, renovando máscaras, potes de álcool-gel e a indignação com aqueles que não se importam conosco e com os nossos.

Era outro mundo em 2019. Num domingo de setembro, acho que no dia 15, coloquei uns exemplares da reimpressão do meu segundo livro na mochila e fui de ônibus até o Posto 6, na orla da praia de Santos. Me indicaram a mesa em que eu deveria me sentar para divulgar minha publicação. Semana do Escritor Santista era o nome do evento. Gente chegando, gente prometendo chegar. E o professor apareceu, acompanhado de seus filhos. Me cumprimentou, perguntou com quem eu havia falado e se poderia sentar ao meu lado. Claro, respondi em tom de obviedade. Deveria, eu queria, senti vontade de retrucar com bom humor. E ali ficamos, batendo papo até nos dispersarmos com a chegada de outros amigos da literatura. No evento, uma garota simpática se aproximou de mim e me procurou nas redes sociais. Saímos por um tempo, até eu me distanciar quando ela achou natural “dar um rolê” no meio dessa pandemia que levou embora o professor.

Professor. Quando me reaproximei dos textos, entre o fim de 2016 e o começo do ano seguinte, passamos a manter mais contato do que nos tempos da faculdade. Professor. Eu sentia alguma vergonha ou pudor de chamá-lo “Marcão”, como a floresta de jornalistas, estudantes e profissionais de comunicação da Baixada Santista o tratavam há uns 30 anos. No dia seguinte à sua partida, relendo suas dedicatórias em quatro livros, tive fragmentos de felicidade tentando tomar o espaço do luto.

Em Quando os mudos conversam: “Leandro, crônicas são retratos afetivos do cotidiano. Espero que goste desta viagem. Um forte abraço, Marcus Vinicius – 10.07.17”. O apreço mútuo crescia na primeira página de A vida começa aos 140: “Leandro, pequenas histórias, grandes reflexões. Obrigado pela amizade! Um abraço, Marcão – 23.09.18”. Em O lobo, o urso e a cura, abaixo da mensagem afetuosa escrita pela queridíssima Beth Soares, foi rabiscada minha dedicatória preferida: “Leandro, a escrita nos uniu. E este livro é a renovação da amizade pela literatura. Muito obrigado! Um abraço, Marcus.” No ano passado, já com o abismo nos puxando, o (mini) histórias de uma gripezinha chegou pelos Correios, sem que tivéssemos a oportunidade de confraternizar nos lançamentos de livros, desculpa criada pelos escritores para reencontrar velhos amigos. A mensagem: “Leandro, livros são sinais de amizade. Somos exemplos vivos. Grande abraço, Marcão”.

Professor. Nesses tempos de patentes ridículas e nomes cretinos para intitular cargos, eu fazia questão da reverência. Aquele que ensina, aquele que forma. Fazendo uma pesquisa rápida nos meus arquivos, encontrei meu primeiro texto publicado num jornal. O título “Celular: do modismo à dependência” adiantava um tema tão presente nas crônicas do professor. Ele e a professora Daniella, que hoje mora em Portugal, foram os responsáveis pela escolha do meu texto de sábado para o “Jovem Jornalista”, parceria da universidade com um veículo local para incentivar os novatos.

Saindo da sala de aula, um lugar marcante é o Saluca Bistrô. Ali, tomamos um café e compartilhamos planos literários. Fiquei meio constrangido, um tempo depois, ao falar da proposta irrecusável para publicar meu segundo livro, No caminho do nada. Com a mesma cordialidade, educação e voz mansa de sempre, o professor entendeu. E mais: escreveu com maestria na contracapa. “Um homem do nosso tempo. Um sujeito aparentemente normal”, era assim que começava.

Provavelmente, seria por ali o café agendado para quando as coisas estivessem mais tranquilas. Nas últimas conversas apelidadas de reuniões, nos falamos por chamada de vídeo pelo WhatsApp. Sugeri um Zoom da vida, mas o professor achava assim mais fácil. Escolhia o simples, como de costume. E ali ajeitamos a melhor forma de inscrever meu projeto de contos num edital público, com o aval de sua editora. Na primeira vez, não deu. Na segunda, me animei com sua pretensão de retomar as publicações num futuro próximo.

Dias atrás, conversamos sobre uma figura da política que envergonha nossa profissão. “Muito louca, não: a política brasileira é podre, Leandro. Podre”, me corrigiu. Professor, professor. Dias difíceis. Queria abraçar as dezenas de professores e amigos, as centenas de colegas de caminhada e profissão, tão impactados por uma partida assim, tão rápida.

A sagrada crônica de domingo me fará falta. No começo do mês, prometi não adiar mais a leitura do PDF de Os jardins de Sucupira, suas crônicas pandêmicas. Queria discutir a obra. Tantos textos, tantas lições, tantas lembranças.

Tanta bondade. Tanta amizade.

Tanta tristeza. Tantas lágrimas.

Que pena, professor. Que pena.