Povos de axé não me enchem o saco
Henri é ateu convicto. Convicto, não militante. Cético, sem pretensão de converter crentes em descrentes. Bom de papo, sem colocar religião em todo papo. Henri é ateu, não é chato. Um cara gente boa, mas com um defeito grave: é meu amigo, amigo de um cara meio chato. Ou muito chato, depende do ponto de vista.
Semana passada, Henri tomou um susto. Ficou paralisado, sem reação. Coerente com suas descrenças, não pediu ajuda aos céus, nem clamou ajuda ao sobrenatural. Bastou postar stories no Instagram com uma música do cantor Baco Exu do Blues para ser perturbado: “Tu ama uma macumbinha, hein?”, era a mensagem do nosso amigo Guilherme, um cara pouco chato nos dias normais, mas muito chato ao falar de religião.
Para o Guilherme, esse “exu” no nome artístico produzia uma prova contra o rapper. E também contra o Henri. Quando lhe convém, o Gui escolhe ser fundamentalista, incapaz de tolerar o diferente. Para ele, qualquer referência às religiões de matriz africana é demoníaca, ofensiva, nojenta. Já faz um tempo, confessou não cantar trechos das músicas do rapper Djonga, porque citam candomblé, umbanda e “essas coisas aí”.
Sei disso porque o Henri me contou, já que o Guilherme não fala comigo há meses. Numa festa, com a rapaziada da antiga reunida, questionou por que eu defendia uma religião que nem era a minha. “Cara, os ‘macumbeiros’ que tu odeia não me enchem o saco, não batem na porta de casa pra falar do fim do mundo, não têm canal de televisão, nem partido político. Nunca vi pai de santo milionário à custa da fé alheia. Deixa os caras, eles não quebram igreja dos outros, nem olham torto quando tu sai de Bíblia na mão todo engravatado”, respondi, regado a cerveja.
Na época, o Henri disse que a minha acidez passou do ponto. Disse que peguei pesado. Pedi para ele lembrar disso quando ficasse doente e voltassem a lhe dizer que a culpa era da falta de Deus no coração. Falei para o Henri não esquecer as vezes em que foi tratado como a reencarnação do capeta por não acreditar na existência do capeta. Perguntei ao Henri se ele achava ácido ter o caráter julgado de acordo com a religião.
Guilherme finge que não lembra, mas todo mundo curtia as festas da dona Irene, antiga mãe de santo do bairro. Prefere não recordar que fomos da mesma turma na primeira comunhão. Apagou da memória que eu e o Henri fomos seus padrinhos de casamento. Do segundo casamento. Respeitamos os ritos, não falamos besteira, nos comportamos como gente decente dentro da igreja midiática. Me disseram que ele nunca esqueceu uma fala minha, que julgou agressiva: “como tu quer falar da Bíblia se mal sabe interpretar um texto?”.
Povos de axé não perturbam a minha paciência, nem questionam os meus valores. São humanos, com erros e acertos, dignos de humanos. Infelizmente, não posso dizer o mesmo de alguns amigos, amigas e parentes, vomitando suas crenças, tentando impor seus ritos. Isso é bem pior que ser chato.
Quando me perguntam se tenho 1 minuto para a palavra do Senhor eu respondo: sim, e você tem um tempinho para Exu?
Salve a força do axé, salve a diversidade e o respeito !
Muito bom! Nós o povo do axé quando pedimos alguma coisa é pela caridade!
E vamos seguir nesse ensinamento ancestral que é a base de nossos fundamentos!
Axé!