Perdoa-me por me demitires
Redes sociais podem ser rodrigueanas. Custo a acreditar na frase anterior, mas cheguei a esta conclusão nos tempos de desemprego, quando conferia meu perfil no LinkedIn diariamente, buscava vagas e enviava meu currículo sem formatação pomposa para causar boa impressão.
Se algum leitor desavisado não entende o significado de rodrigueano, não precisa sentir vergonha. É referência ao escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, que escandalizou a família tradicional brasileira com peças teatrais mostrando a vida como ela é.
Perdoa-me por me traíres é uma delas. Escrita em 1957, tem no enredo um pedido de desculpas por parte de uma pessoa traída. É muito mais que isso, evidentemente. Mas o nome da peça resume bem um comportamento estranho nas redes.
Me sinto na plateia de um teatro lotado quando vejo um textão com explicações desnecessárias sobre a demissão recente. Para manter o pudor, o currículo não é postado na legenda de selfies. Nem são xingados os colegas traíras, puxadores de tapetes. Tampouco são criticadas eventuais injustiças cometidas no ambiente de trabalho.
Quando as cortinas são abertas, nos deparamos com uma atuação impecável desses profissionais, seguidores fanáticos da Religião Coach. Em parágrafos porcamente encadeados, chamam atenção os agradecimentos por toda a trajetória e oportunidades dentro da firma – uso esse termo aqui, mas é claro que a Seita da Positividade não aceita uma palavra tão simplória assim: “firma”.
As experiências vividas no horário de expediente são vendidas como grandes feitos, comparáveis à invenção da roda. Tudo é impactante. Iludido, chego a pensar se ao fim do textão não vou me deparar com o anúncio da superação de uma doença grave, mas me decepciono. Como toda postagem rodrigueana não passa de mero teatro, a atuação virtual disfarça o compreensível desespero porque agora o dublê de influenciador mora na rua da amargura, caminha na calçada do desemprego. Boletos não são pagos com likes.
O pé na bunda é maquiado com a compreensão sobre o momento em que passamos, o bilhete azul se esconde atrás de repetidos agradecimentos, de mãos dadas com o medo de ser mal falado em cartas de recomendação. Fora a cafonice e o péssimo gosto.
Quando demitido, um ser humano com alma só sente vontade de mandar à puta que pariu o responsável pela dispensa. Não há sentimento good vibes que dê conta. Torcer para quem me demitiu ir à merda é perfeitamente compreensível e humano.
Mas em Perdoa-me por me demitires, peça tragicômica encenada diariamente no LinkedIn, o script exige um pedido de desculpas a quem deu o empurrãozinho porta afora. Me sinto testemunhando um religioso se confessando com um bicheiro.
Perdeu (o emprego), playboy. Paciência. Faz parte. Não precisa fingir que estava tudo programado, amigo. É foda, mesmo. Você foi demitido. Ok. C’est la vie. Segue o jogo. Toca o barco. Bola pra frente. Fazer o quê?
“Obrigado, universo, por permitir que eu tomasse no cu.”
“Que toda essa energia cósmica conspirando a meu favor se transforme em uma conta de luz paga.”
Adoro teatro. As peças, o clima, a plateia, a coxia. Adoro o teatro dos palcos, passo longe das encenações virtuais.
Sensacional Leandro. Curto muito sua franqueza.