Obrigado por nada e desculpa qualquer coisa
Estacionei o carro pouco depois da esquina, a alguns passos do consultório médico, numa daquelas ruas coadjuvantes do Centro. Avisei minha irmã, dona do veículo. Meu cunhado fazia uma endoscopia. Enquanto esperava lá fora, encarava as casinhas minúsculas e coloridas dividindo a calçada com prédios não muito grandes, não muito pequenos. Um homem passeava com o cachorro, meio distraído, meio desconfiado. Olhei para os dois lados, atravessei.
— Roberto, Roberto. E aí? Firme?
Roberto baixou os óculos escuros, olhou para o cachorro e o puxou. Me cumprimentou com o receio do toquinho entre mãos fechadas. Só depois de alguns minutos esboçou o primeiro sorriso escondido pela máscara. Só quando lhe dei a certeza de não carregar pedras nas mãos. Só o papo despretensioso de dois velhos amigos, sem contato por uns bons anos.
Mostrei fotos da família, contei as boas novidades e omiti as ruins. Se bem conheço Roberto, ele deve ter feito o mesmo. Lançou o velho olhar desconfiado quando apontei o seminovo da minha irmã, estacionado a poucos passos dali. Um olhar de culpa, talvez. Precisei vender meu carro, meu primeiro carro, depois que Roberto não cumpriu sua palavra e me deu prejuízo nos negócios, anos atrás. O abalo em nossa amizade foi irreversível, o impacto em minhas finanças tem cicatrizado aos poucos, bem aos poucos.
Roberto se despediu com ar de culpa, de arrependimento.
— Te chamo depois, teu número é o mesmo ainda, final 94?
— Esse mesmo.
— Beleza. Cara… Vou nessa, a mãe dele já mandou mensagem— apontou para o cachorro — Se cuida e… desculpa qualquer coisa, hein?
Meu cunhado dormia no banco de trás enquanto minha irmã mandava mensagens frenéticas pelo celular para os colegas de trabalho. E eu, que sou um pote até aqui de mágoa, pensava no quanto esse papo me fez bem, mesmo com seus menos de dez minutos.
Semana passada, duas mortes repentinas por covid-19 de pessoas que mereciam viver mais, bem mais, me fizeram pensar no passado, no presente, no futuro. Se houver. Não que eu vá perdoar Roberto pelos prejuízos financeiros e emocionais de nossa parceria profissional, mas remoer não melhora nada nesses tempos em que sobreviver já basta. Vivemos uma travessia longa e quem olha muito para trás é engolido pelas ondas do noticiário frenético.
Desculpa qualquer coisa. Só quem sente muito remorso entrega um salvo conduto como esse. A oportunidade de perdoar até o imperdoável, de absolver o que sequer merecia julgamento. Desculpa qualquer coisa.
Deixei o carro na garagem e ajudei minha irmã a carregar seu marido. Ele ficou caído no sofá. Ela tirou um dinheiro da bolsa e eu recusei. Era um favor, afinal.
— Pelo menos pro Uber, pra não voltar de ônibus.
Aceitei.
— Obrigado por nada.
Ela riu, balançou a cabeça, nós nos despedimos e eu desci os três andares pela escada.
Desculpa por alguma coisa só não é pior do que o Obrigado por enquanto.