O último latido*

6 de junho de 2022 1 Por Leandro Marçal

*Crônica escrita pelo meu querido amigo Carlos Roque, autor do recém-lançado Enquanto o mundo.

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Ontem, meu cachorro estava estranhamente muito mais carente que o normal e foi aí que lembrei da minha promessa de que ele será o último.

Vivi com vários cachorros na vida. Tenho quase cinquenta e cinco anos e desde que me lembro, sempre tive um cachorro por perto. Cachorro que era cachorro, nada dessa coisa de cão de guarda. Pensando bem, meus cachorros quase não latiam. Apenas ficavam em volta e dormiam.

Alguns que chegaram e se foram rápido não lembro mais os nomes e estão lançados no limbo, borrado por um pequeno afeto, mas outros são inesquecíveis e é como se ainda estivessem deitados ao meu lado, com a barriga pra cima, pedindo afago.

Ele, o Duque, um pequeno cão, com sua pelagem branca e marrom, teve a missão de me ensinar a cuidar de outro ser que o meu pai trouxe do Parque das Bandeiras dentro de um saco de papel, e me disse que fez isso para que ele não fosse atropelado na Rodovia Pedro Taques. Cinco anos depois, quando me seguia até a casa dos meus primos, morreu atropelado por um caminhão, na Rodovia Anchieta.

Todos os meus cachorros foram enterrados no quintal de casa e recebiam uma pedra enorme como lápide.

O Sal, que era mais da Keyla do que meu, fugiu de casa e também morreu atropelado, na mesma faixa, na mesma curva, na mesma estrada que nos levava.

O Mally, que me ensinou a ser amado e que ganhei do meu amigo Peixinho, enquanto fazia o projeto de sua loja de surfwear.

O Mally foi um caso à parte. Quando cheguei em casa, minha mãe disse que não queria mais um cachorro e depois de um breve debate ela perguntou se era macho. Quando respondi que sim, vencida pela minha teimosia, disse: “Dos males, o menor!”, nomeando assim o cão e a noite. Depois, ao começar a dividi-lo com minha irmã Kelly, ele deixou de ser Mali para virar Mally e nessa divisão ele se mostrou sábio o suficiente para dar amor e atenção na mesma medida para ambos os donos.

O danado comeu o pássaro azul do meu irmão Kleven (Kico para os intímos) arrombando a gaiola deixada no meio do quarto e com a porta aberta.

Outra das suas. Para nossa surpresa, o negro de pelos brilhantes dividia a cama com a minha mãe. Sua cama era em um dos nichos da estante da sala, mas quando ela dormia, ele subia na cama e deitava aos seus pés e saía da cama um pouco antes dela acordar. Mamãe só acreditou nesta dinâmica noturna quando gravamos o meliante em ação.

Ele também, mesmo com pouco tamanho, aterrorizou por quinze anos os garotos da Rua Dezesseis e, já velhinho, fazia uns rapagões passarem longe da nossa porta. Sem nenhuma razão, a Quézia tinha medo dele… na verdade, pavor.

O melhor cão do mundo, assim nomeado pela Kelly, morreu no dia do casamento de nossa mãe.

E o Preá, o primeiro. O cão do meu pai. Era um cachorro enorme e eu e o meu irmão mais velho fomos incumbidos de alimentar e dar banho no gigante e neste ínterim aproveitávamos para montá-lo e passear pelo quintal, até ele ficar cansado e nos derrubar com uma simples sacudidela. Na mesma semana que meu tio Zé morreu, ele sumiu e o encontramos longe de casa, também morto, debaixo da sombra de uma pedra enorme, como se quisesse nos fazer o favor de avisar que o buraco que se abriu na casa ao lado em breve se abriria na nossa, criando uma nova fronteira entre a sala e os quartos, e não haveria terra suficiente para enterrar tanta dor e nem pedra suficiente para encobrir tão grande vazio.

Meu pai disse, e nunca tive motivo para duvidar, que os cachorros sentem e sabem quando irão morrer e se afastam, fogem, para que ninguém sofra. Nem eles, nem nós. Desta vez o féretro foi diferente. A lápide já estava lá. Tiramos um pouco de terra debaixo da pedra grande, no lado onde o musgo crescia pela ausência do sol e o empurramos para dentro do escuro buraco. Um grande túmulo para um gigante manchado de muitas cores.

E o Mininu – o pequeno pelado, porém peludo – presente do meu cunhado Paulo, casado com a minha irmã Kelly e que já está com treze anos e neste tempo todo ouço com frequência minha esposa repetindo que ele tem a capacidade de só gostar de mim e interagir comigo, para tristeza da minha filha – meu filho quer um gato – que, em vão, faz um esforço danado para chamar a atenção dele. Ele sempre está aonde estou.

Mudei de casa e não sei onde ele será enterrado.

Quero que ele viva mais dez, vinte anos, não só por ser o último a seguir os meus passos, mesmo não sabendo para onde vamos, estando ou não; pela força do acaso; vivos ou mortos, mas por não estar preparado para perder mais nada, nem ninguém.