O próximo quilômetro

23 de maio de 2022 1 Por Leandro Marçal

Corredores de rua são como fanáticos religiosos. Você certamente já esbarrou num fundamentalista dessa seita nada secreta. No trabalho, no boteco, na balada ou no aplicativo de relacionamentos… Eles estão espalhados por aí, buscando uma brecha para tentar convencer gente ingênua a dar suas primeiras passadas.

Basta deixar escapar que essa atividade física é meio chata e lá vem o fiel explicando tecnicamente o jeito certo de começar a vida de dublê de papa-léguas: “Primeiro vai na caminhada, no teu ritmo, não inclina o corpo muito pra frente, não acelera tanto logo de cara, cuidado pra não girar demais o quadril pros lados”. Eu não me espantaria se um missionário tocasse a campainha de casa num domingo pela manhã, vestindo roupa de exercícios para me evangelizar. “Bom dia, o senhor tem cinco minutos para ouvir a palavra sagrada do pace inferior a cinco minutos e meio?”, diria em tom cordial e marqueteiro.

Se me acusarem de fanatismo religioso pelas corridas, não confirmo e nem nego. Tomo distância segura dessa galera disposta a falar de seus recordes pessoais até mesmo na hora das intimidades. Prefiro correr sozinho, sem me preocupar com provas, tempos, competições. Corro comigo e para o meu bem estar, pela saúde física e mental. Nada mais. No máximo, escrevo com frequência maior que a recomendada pelos cardiologistas sobre como a corrida para mim é sinônimo de autoconhecimento.

Desde o mês passado, embalei nos 10 quilômetros, duas ou três vezes por semana. Tive receio de chegar a um patamar difícil de repetir, mas coloquei em prática o superpoder da consistência para dar inveja aos heróis da Marvel. Enchi a página inicial do meu aplicativo com distâncias de dois dígitos.

Quando gente próxima pede uma recomendação para chegar a essa marca, que está longe de ser das mais notáveis, penso em ansiedade. Outro dia, ouvia o relato de uma maratonista amadora sobre a importância de pensar apenas e tão somente no próximo quilômetro, deixando o percurso completo para depois. Mentalmente, visualizo cada mínima etapa do trajeto, de pouco em pouco, sem me afobar com a ânsia pelos dez.

Sofro muito entre o quinto e o sétimo quilômetro. Sinto vontade de desistir, meu corpo avisa que era mais agradável comer um x-burguer em casa e eu rebato imediatamente com dados estatísticos de prevenção a doenças com o abandono do sedentarismo. E fazemos as pazes, enquanto mentalmente ouço Chico Buarque entoando o verso “Não se afobe não / Que nada é pra já”, da música Futuros Amantes.

E todos esses conselhos baseados na minha experiência pessoal com as corridas de rua parecem afugentar pretensos e impacientes iniciantes. Essa ideia do próximo quilômetro é mais lenta que a curtida instantânea nos posts de redes sociais, onde validamos exercícios com a aprovação de amigos virtuais que pouco se importam com a nossa condição física.

Tempos atrás, eu me preocupava demais com o futuro. Essas coisas de gente ansiosa. Uns bons meses de psicoterapia me ajudaram a planejar os próximos meses e anos, com a consciência do poder do imponderável, da nossa falta de controle sobre uns 90% da nossa vida. Como uma chuva forte para impedir a corrida de hoje, a leve torção para interromper meus treinos por semanas, o cansaço extremo me obrigando a reduzir drasticamente a velocidade se eu quiser chegar a dez mil metros percorridos.

Deixo o futuro para o futuro, deixo o presente mais presente. Corro o próximo quilômetro, e o próximo, e o próximo, e o próximo. São muitas graças alcançadas entre o inferno, o purgatório e o céu dos meus 10 quilômetros.