O mundo segundo as formigas

18 de outubro de 2019 0 Por Leandro Marçal

Se ando sobre um solo cheio de mato, não paro de olhar para baixo. Pior do que pisar no que saiu dos intestinos de cavalos ou cachorros é me deparar com um furo cercado de areia. Parece até trabalho de furadeira para colocar parafusos no chão, mas é um formigueiro.

Quem já pisou na casa das caçadoras de açúcar sabe bem o quanto essa experiência é desesperadora. Impossível seguir as instruções por calma enquanto as mordidas dos seres minúsculos se multiplicam, elas sobem pela escada de nossas pernas e corremos para pular no primeiro balde d’água pela frente.

Tenho até admiração pela espécie mais trabalhadora do mundo animal. Elas entendem nosso passo distraído como ataque mortal. Todas se unem contra um misterioso gigante destruindo seu lar, construído pelo suor de filas ordenadas, carregando uma folha, um fragmento de doce ou resto de cadáver. Tudo pelo bem comum.

Desastrado que sou, já corri depois de pisotear a moradia das formigas um bocado de vezes. Via maldade em usar sol e lupa para matá-las, como os livros de ciências cruelmente nos ensinavam.

No máximo, ia até à feira com minha mãe e comprava cravos. Dizem que as formigas fogem da iguaria. Morda um deles quando estiver comendo um beijinho em festa de criança e entenda porque as anteninhas minúsculas balançam e as simpáticas criaturas fogem quando se deparam com o exótico espantalho.

Fico imaginando os diálogos das operárias embaixo da terra, enquanto se organizam. A formiga-rainha deve ser admirada, mesmo com os boatos de que não exerce nenhuma autoridade sobre o proletariado formigueiro.

Elas devem olhar para cima, admirando o buraco que evito pisar nas caminhadas pelos terrenos arenosos ou de mato aparado.

– Olha que luz forte. O que tem depois dela, além do nosso mundo? E se a gente pedir para alguém do além-formigueiro nos tirar daqui, pra gente sair dessa vida de só trabalhar e trabalhar?

– Um dia a gente chega lá. Tem algum Formigão-Mor olhando pro nosso esforço, vamos ser recompensadas.

E continuam o trabalho incansável, até saírem da irrelevância ao migrar sua casa para o batente da porta. Devem enxergar o fim dos tempos quando piso em seu mundo.

– A areia tá caindo, é o apocalipse, vamos subir pelo formigueiro até o céu, o paraíso de açúcar infinito tão prometido é uma realidade, são sinais do além-fomigueiro!

Para a infelicidade das minúsculas, pouco me importo com elas. Enquanto olham para cá, basta um pisão, uns inseticidas fedidos, uma lavada caprichada no canto do batente, no quintal ou no terreno todo cheio de mato. E tudo acaba, sem aviso.

Se para elas a tragédia é a profecia de um antigo formigão sábio, para mim não passa de um escorregão por acaso. As individualidades das formigas e as coincidências de fora do formigueiro são irrelevantes para o dia a dia corrido.

Nenhuma delas sabe quando um pé tamanho 43 vai destruir em segundos o que levaram anos para erguer. Formigões sábios não previram o dia que um rodo vai levar água suficiente para seus corpos boiarem no tsunami trágico para o formigueiro.

Posso andar cuidadosamente, evitando destruir esses minúsculos universos, mas não consigo entender as formigas. Diante da própria pequenez, seu jeito de interpretar o mundo não tem muito sentido para mim.