O jornalismo acaba

16 de julho de 2023 2 Por Leandro Marçal

Livremente inspirado na clássica crônica O amor acaba, publicada por Paulo Mendes Campos na Revista Manchete em 16/05/1964.

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Sim, o jornalismo acaba. Onde? Quando? Como? Num programa dominical, por exemplo, naquela entrevista chapa-branca logo depois da denúncia de grande relevância social; acaba no café da manhã, quando nos assustamos com o clickbait dos grandes portais; de repente, ao meio do cigarro que o leitor atira de raiva ao perceber que o título da matéria era sensacionalista e não tinha nada a ver com a informação real; na acidez do comentarista criando polêmica para viralizar nas redes sociais; e acaba o jornalismo no enxugamento das redações; como se as grandes empresas não dependessem de profissionais qualificados; e acaba o jornalismo quando profissionais não se percebem como classe trabalhadora; e acaba o jornalismo na reprodução das versões oficiais sem contestação; e no copia e cola de releases; e no olhar do editor-chefe que só se preocupa com números; e na chefia que dá tesouradas em jovens mais talentosos; às vezes acaba o jornalismo na tortura de pobres em programas policialescos; mecanicamente, nos podcasts, com apresentadores estúpidos diante de informações óbvias; no andar heroico do jornalista metido a justiceiro; nos setoristas se sentindo celebridades; na falta de interpretação de texto; na pouca leitura; na gritaria do apresentador; quando o jornalista quer aparecer mais que a notícia, o jornalismo pode acabar; quando o jornalista se mistura ao influenciador, o jornalismo pode acabar; na compulsão pela vida particular de gente famosa; no sábado, depois de um plantão entediante com aquela pauta requentada; no filho do dono destruindo a credibilidade do veículo de comunicação; e o jornalismo acaba na baixíssima representatividade em cargos de comando das redações; em salas de chefia tomando decisões escondidas do restante da equipe; nos roteiros de matérias feitas de jornalistas para jornalistas; na alergia de algumas televisões às periferias; no amor ao Google o jornalismo não começa; no SEO o jornalismo se dissolve; fora dos grandes centros o jornalismo pode virar pó; nos veículos locais, mediocridade; nas erratas, remorso; no bolso dos profissionais, pouco dinheiro; na denúncia de interesse público ignorada, o jornalismo acaba; no declaratório, o jornalismo acaba; na descontrolada mania de não checar notícias; às vezes acaba no “diz jornal”; e muitas vezes acaba na espetacularização da tragédia, dispersada entre links; e acaba no excesso de comentaristas e escassez de grandes reportagens; no coração que se dilata e quebra ao tirar conclusões apenas pelo título; e acaba no longo périplo da falta de contexto até se desfazer em outra polêmica do dia; e acaba depois que se viu a falta de uma cobertura mais crítica; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido ao continuar repercutindo irrelevâncias sem razão até que alguém, humilde, o resgate; às vezes o jornalismo acaba como se fosse melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança de bravos profissionais nas redações; uma ilação sem checagem e acaba o jornalismo; na pós-verdade; na voz dada ao golpismo; de manhã, na falta de isenção; de tarde, na repercussão do suposto ex-humorístico; de noite, no analista retrógrado; na desinformação excessiva disfarçada de notícia séria; em todas as enquetes inflamando o público o jornalismo acaba; a qualquer hora o jornalismo acaba; por muitos motivos o jornalismo acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o jornalismo acaba.