Na minha cidade, políticos não sentem azia

18 de novembro de 2021 0 Por Leandro Marçal

Minha ansiedade crônica também se manifesta pelo estômago e suas adjacências. Nos dias de crises agudas, uma azia forte costuma surgir quando as dores de cabeça tiram folga. Na ressaca, depois da rotação acelerada da Terra, é a vez do intestino mostrar seus superpoderes, lembrando rompimentos de barragens.

Na semana passada, minha saúde mental até que estava em dia, dentro do possível. Sem a insônia dos dias ruins, me peguei sentindo um frio na barriga lendo o noticiário da minha cidade. Faz uns dias, a prefeitura atravessou a rua de mãos dadas com a câmara dos vereadores e extinguiu as secretarias de cultura e esporte, fundindo-as numa só pasta, feito sabonetes grudados no nicho embutido do banheiro. Tudo de mansinho, na ponta dos pés, para não fazer barulho.

Quando eu era criança, já era viciado em ver notícias, mas não entendia bem o significado dos seus desdobramentos. Guardo daquela época uma frase repetida incontáveis vezes pelo meu pai, sempre que um novo escândalo era anunciado no Jornal Nacional: “precisa ter muito estômago pra trabalhar na política”.

Deve ser por isso que eu jamais daria certo exercendo um cargo eletivo, capaz de modificar os rumos da máquina pública. Por exemplo: a dor de barriga seria das bravas se eu tivesse que publicar um post como o da prefeitura, anunciando a suposta super-secretaria como um processo de modernização.

E o que seria da minha frágil fluidez intestinal se eu repetisse os passos de um nefasto governo federal, deixando a cultura no cantinho do pensamento, junto com o amiguinho dos esportes, para depois vomitar méritos quando um munícipe se destaca nessas áreas como uma força da natureza? Talvez eu ficasse dias sem gastar minutos no trono e até precisasse recorrer aos laxantes.

Mas os políticos da minha cidade, os novos e os velhos, não sofrem com problemas digestivos. Comem e bebem melhor do que eu, um mero juntador de palavras. Ao longo desta semana, houve reuniões e protestos, contestações e respostas, justificativas e alfinetadas. Segundo figuras públicas da província, apenas “artistas da oposição” estão contra a dança das cadeiras das secretarias. Estaríamos nós, essa gente da cultura, “criticando por criticar” as sempre acertadas e técnicas medidas da turma da caneta. A secretaria da cultura e a secretaria de esportes acabaram, mas não vão acabar, se entendi bem.

Para todo pênalti sem goleiro há uma formação tática explicada pelo treinador. Para toda azia, um antiácido. Para cada batom na cueca, flores dadas buscando uma reconciliação libidinosa. Para a dor de barriga, um bom chá de boldo.

Na minha cidade, os políticos trabalham para alertar a população sobre as óbvias conexões entre o cérebro e os intestinos. Fica difícil saber de onde vêm as ideias e por onde saem as medidas para agradar a patuleia.

Peço perdão caso essa crônica tenha ultrapassado os limites da escatologia. Deixo a pouco nobre missão para os políticos da minha cidade, do nosso país. O estômago de cada um deles é mais forte que o meu.