Na lama, na mídia*

4 de março de 2020 1 Por Leandro Marçal

*Dani Origuela é jornalista de raros textos. Ela tem o olhar de cronista para questões do dia a dia, por mais que teime em não admitir. Com a bagagem de quem percorreu os cantos da Baixada Santista como repórter, ela escreveu o texto abaixo com impressões e dados sobre a tragédia anunciada dos últimos dias.

Palafitas, trapiches, barracos, filhos da mesma agonia. Na Baixada Santista são 300 mil morando em favelas, disse o IBGE no Censo de 2010. O de 2020 deve acrescentar mais alguns milhares nesta situação. Guarujá tem o maior número de famílias em aglomerados subnormais. Os prédios de luxo e mansões contrastam com as habitações precárias. São Vicente, a mais antiga do Brasil, é a segunda no ranking. Tem em sua paisagem geográfica as palafitas. Cubatão vem logo atrás, seguida de Santos, a cidade do maior porto da América Latina e da maior comunidade em cima de mangue, rio e maré do país.

O repórter do programa de entretenimento veiculado em todo Brasil mostrou a viela de um morro de Santos. Teve gente que achou que era do Rio de Janeiro. Como pode a terra do Santos de Pelé, do maior jardim de praia do mundo e do gigantesco complexo portuário ter família morando embaixo de uma rocha arriscando a própria vida e de seus filhos? Ouvi um “mora lá porque quer”. Meu senhor, mora lá porque precisa, antes em perigo e com teto do que ao relento em perigo.

Pobre leva a culpa por morar, e morrer, em área de risco e proteção, rico constrói nessas áreas com autorização e compensação (sic) ambiental. Lembrei dos macacos fugidos de uma área de restinga em Bertioga. O lar dos primatas e de várias espécies silvestres virou condomínio de luxo.

As rodovias dividem alguns municípios da Baixada. Presta atenção quando passar novamente nesses rolês. Do lado praia infraestrutura e desenvolvimento, do lado morro IDH baixo e esgoto a céu aberto. Mora melhor quem paga bem. Direito ao chão pra quem?

A natureza, coitada, vem respondendo com fúria aos nossos ataques de ego, omissão e consumo. Mas é cômodo dizer que a culpa é do aquecimento global. Também é, mas já dizia Brecht que o analfabeto político não sabe que o preço de tudo, até da vida, depende da política. Banana pra você ó! Chora a morte os que ficaram, chora professores e servidores do estado que apanham enquanto deputados decidem que trabalhar mais alguns anos e pagar a mais por isso não tem problema. Tudo em nome da gestão: “fogo nos baderneiros, que o vale terno está em dia”.

É um mar de lama, que soterra sonhos e faz brotar da tragédia a solidariedade (que lindo!). Vamos ajudar os irmãos, meus irmãos. Mas dividir o pão e olhar o próximo é todo dia, dona Maria, não esqueça disso.

Hoje o sol abriu. Tem corpo para achar, corpo para velar e enterrar. Ainda tem lamento e tristeza a chorar. O outono logo chega e a chuva aos poucos vai embora. A vida voltará ao normal, mas o que é normal nessa vida? Até que o próximo verão chegue, a tragédia já terá sido amenizada. Ainda lembram de Brumadinho e Mariana? Também foi um mar de lama.