Minhas Coisas
Sou escravo das palavras. Ganho a vida escrevendo para os outros e pelos outros. Volta e meia, discordo da mensagem redigida por mim, mas preciso pagar as contas. Entrego no prazo, recebo elogios, sou cobrado, faço modificações a gosto do freguês e volto para casa, volto à minha vida, volto à frieza da realidade.
Me vejo cheio de coisas para fazer, cheio das Minhas Coisas para escrever. Como se aqui, nas Minhas Coisas, assinadas com a vaidade autoral, eu me reencontrasse. Nesses lugares, não me rendo a clientes e exigências de instâncias superiores. Sou eu, só eu e minha liberdade para nadar no mar da ficção.
Uma ficção honesta, com o perdão da expressão. Não a ficção das vendas, da persuasão encantadora de serpentes, enganadora de um público batendo palmas. Nas Minhas Coisas, convido o leitor a viajar pela literatura. Se quiser ir embora, pode ir. Se ficar, será nas minhas condições, seguindo as regras de um mundo por mim criado, depois de fritar uns bons neurônios. Nem sei explicar esse universo.
E tudo bem. Quando escrevo Minhas Coisas, não busco moral da história ou lições. Nada de ensinamentos para os mais novos ou conforto para os mais velhos. Não busco nada. Ao me dedicar às coisas alheias, sigo o mapa traçado pelo contratante. Muitas vezes, o caminho é cheio de lombadas e buracos. Vou desviando, cobrindo ou avisando à prefeitura sobre a necessidade de reparos. Nem sempre a administração pública aceita as sugestões, me dando vontade de parar no acostamento. É quando lembro a necessidade de ir até o fim, sob risco de tomar multas graves de diversos órgãos.
Minhas Coisas não pagam minhas contas. Quando explico esse cenário, os otimistas mais iludidos pedem para eu não me preocupar e dar tempo ao tempo. “Suas Coisas são ótimas, já já alguém te nota e você começa a viver só disso, relaxa”, buscam, em vão, me animar. Conhecendo as coisas atuais do nosso lugarejo, não tenho muita esperança. Nem perco tempo lamentando, sei bem onde piso.
Não vou mentir: Minhas Coisas já me causaram perturbações, também. Gente vestindo carapuças, gente me olhando de lado, contratantes me ignorando depois de olhar meus caminhos percorridos. Faz parte. Quem brinca com chuva, pode se molhar. E nem sempre saio de casa com capa e guarda-chuva. Nuvens podem mudar rapidamente, desprezando a previsão do tempo.
Já tentei largar Minhas Coisas, esquecer Minhas Coisas, arquivar Minhas Coisas numa pasta esquecida. Deixar tudo de lado e não me importar nem com as coisas alheias. Ter um salário vindo de planilhas de escritório, sempre com uma resposta pronta para o comando digitado nas células. Sem erros, pura matemática. Mas sempre que fujo, o destino bate à minha porta, pedindo para me dedicar às coisinhas e deixar a vida financeira em dia. Ou quase isso.
Coisas da vida.
[…] bem os textos: uns para pagar as contas, outros autorais. Já ironizei piadas de chefe e fiz chacota de um antigo patrão. Pelo menos até hoje, CNPJ algum […]
[…] foi categórico. “Perde essa vergonha aí, rapaz. Tu é escritor. Tu escreve um monte de coisas. Umas pra pagar contas, outras não. Mas é isso aí. Tua profissão é escritor, tu é escritor, sem dúvida”, me […]