Meu amigo pastor
O Rico é meu amigo de infância. Ou de antes de nascer. Minha mãe diz que a vizinha conversava um tempão na porta de casa. As duas grávidas. Sou dois meses e dez dias mais novo que o Henrique. Seu convite para uma visita à igreja do bairro, onde agora é pastor, foi aceito após a insistência de meses. Eu tinha que ir lá pelo vínculo pré-vida, não por crença religiosa. Dar uma força, incentivar, essas coisas.
Na vida adulta, pouca gente chama o Rico de Rico. É Henrique, o pastor Henrique. Com o passar do tempo, os apelidos ficam pelo caminho, os mais formais preferem usar só os sobrenomes. E convenhamos, Pastor Rico pega mal demais.
Fui lá participar do culto do pastor Henrique. Logo eu, criado no catolicismo, nota azul na catequese. Deve ter sido a segunda ou terceira vez que acompanhei de perto um ritual evangélico. Anos atrás, fui a um casamento. Muitos anos atrás, o convite aceito foi por um namoro colegial. Ela só me aceitaria se eu tentasse encontrar uma resposta na igreja. Mas naquela época, eu nem fazia questão de perguntar muita coisa, só o rolê do fim de semana.
Me senti acolhido na saudação, logo na entrada. Sentei no banco de madeira e fiquei esperando. Meio perdido, não via o Rico, nem o pastor Henrique. Devia estar se preparando para falar em público. Ele sempre gostou de se apresentar, chamar atenção na frente da galera. Era chamado de “aparecido”. Quem não é visto não é lembrado, dizia. Até por isso, pegava geral. E sempre dava um jeito de me deixar uns rebotes, me colocando na cara do gol, como falava em sua malícia adolescente. Ri com o canto da boca ao pensar em outros tempos, mas me recompus para não parecer desrespeitoso com o templo.
O medo de ver no púlpito uma manifestação religiosa a favor do extremismo recente foi dissipado com antecedência. Vou à igreja para orar, não para fazer politicagem, o Rico avisou. Fiquei na dúvida se era sincero ou só um tiro de misericórdia nas minhas desculpas.
Quando avistei o Rico, pastor Henrique acenou de longe. Veio, me abraçou, desejou paz, abriu um semblante de satisfação. O mesmo dos tempos que fumávamos maconha na rua de trás, obviamente escondidos das nossas mães. Logo saiu, precisava falar com outras pessoas.
Quase tive uma overdose de lembranças. A celebração começou e fiquei impressionado com a desenvoltura do Rico. O jeito de falar, as mensagens que transmitia. Pensei que desmaiaria de vergonha quando ele apontou para mim, dando as boas vindas ao irmão que visitava a igreja pela primeira vez.
E ele falando de varões e varoas, de promessas, do reino dos céus e do sofrimento no inferno. E eu viajando ao passado nos jogos de futebol na rua cheios de palavrão, nas brigas em baladas que podiam ter custado a vida do Rico, nas ressacas intermináveis, nas vezes que salvei o pastor Henrique de ser pego pulando a cerca.
Ao fim do culto, a esposa do Rico e o filho do Rico foram ao púlpito. Outro fiel engravatado falou umas coisas sobre aquela família, um exemplo de família. As coisas mudam, as pessoas mudam. E o Rico mudou bastante.
Quase sempre a distância permite que vejamos o outro e suas mudanças. A pertidão (palavra criada pela minha filha) nos cega e nos prende em um passado, que mesmo devendo, nunca passa.